quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

CEM ANOS DE PERDÃO



CEM ANOS DE PERDÃO
clarice Lispector
Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então, é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.
Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. “Aquele branco é meu.” “Não, eu já disse que os brancos são meus.” “Mas esse não é totalmente branco, tem janelas verdes.” Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.
Começou assim. Numa das brincadeiras de “essa casa é minha”, paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.
Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio, e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.
Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo.
Eis-me afinal diante dela. Paro um instante, perigosamente, porque de perto ela ainda é mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.
E, de repente – ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa. O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.
Levei-a para casa, coloquei-a num copo d’água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.
Foi tão bom.
Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.
Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensangüentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora.
Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho virgens. (In Felicidade Clandestina 10ª ed. pág 68)

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O DIREITO DE MUDAR DE OPINIÃO


“O DIREITO DE MUDAR DE OPINIÃO”

MARINA COLASANTI “MULHER DAQUI PRA FRENTE” -1981



Opinião é feito navio: a gente não abandona, afunda com ele se for preciso. Foi o que pensei desde criança, desde quando me convenceram de que assim estava certo. A vida, pensava eu, era para ser levada na base do “repete se você é homem”, e a gente ali, homem paca, repetindo incansável e heróicamente, agarrada naquele ponto de vista, fazendo da manutenção da opinião uma questão de honra, quando honra ainda era fundamental.
Foi isso que me disseram, e foi nisso que acreditei até certa hora. Depois pulei fora. Agora convivo serenamente com a evidência de que as minhas opiniões não são definitivas. E como o poeta americano walt Whitman, tenho repetido freqüentemente: “ você diz que eu me contradigo. Sim, eu me contradigo mesmo”.
“ A melhor surpresa”, segundo o slogan de uma grande cadeia de hotéis americana, “ é não ter surpresa nenhuma.” É encontrar tudo que esperávamos. Gostamos de chegar em casa e deparar com as coisas nos seus devidos lugares. O jarro no centro da mesa, sofá e poltronas em esquadro bem comportado. Qualquer quebra nessa arrumação é suficiente pra nos mergulhar no espanto. O mesmo com as idéias. Gostamos da nossa cabeça bem arrumada. Opiniões já conhecidas, nos seus conhecidos lugares. Pensar parece assim mais fácil, viver parece mais seguro. Basta estabelecer os parâmetros iniciais, e tocar o bonde.
Os trilhos da vida, porém, não são tão paralelos. Crescemos, aprendemos, e de repente aquela bitolinha fica estreita demais, e o caminho traçado, que acreditávamos tão exclusivo, revela-se apenas um, entre tantos. É hora de mudar.
É hora mas hesitamos: é? Seria? Não é? A incerteza nos pega pelo pé, o medo nos abocanha pelo estômago. E os preconceitos cravados na nuca, no pé do ouvido, murmuram que mudar de opinião é sinônimo de inconstância, que o bonito é manter-se firme ns próprias opiniões.
Altissonante, mas falso e perigoso. Pois o mundo não se fez ficando parado, nem é ancoradas a idéias já superadas que encontraremos nosso crescimento.
“ Só os parvos não mudam”, rebateu Rui Barbosa certa vez, ao ser acusado de mudar de idéia. A frase certamente não agradou às multidões, e muito menos a quem o acusava. Ninguém gosta de ser chamado de parvo. Mas, apesar de ser um ato inteligente, qualquer mudança de opinião encontra grandes resistências.
Resistências de fora, em primeiro lugar. Os outros, ou seja, a sociedade como um todo não costuma gostar de pessoas questionadoras. É o mesmo fenômeno da sala. Tudo é mais fácil quando ocupa apenas um espaço já estabelecido. Tudo é mais controlável. Uma pessoa que não questiona aquilo que aprendeu desde pequena, uma pessoa que não pergunta o porquê das coisas, uma pessoa que não procura a própria verdade é certamente uma pessoa obediente, fácil de ser conduzida pelos caminhos que os donos do poder houverem por bem lhe traçar.
Da mesma forma, uma pessoa que, embora tendo questionado algumas verdades iniciais, “ empaca” numa verdade que estabelece como sendo a única verdadeira e imutável é uma pessoa previsível, em relação à qual podem-se armar os esquemas.
Mas a pessoa questionadora, a que está sempre repensando as coisas e procurando novos ângulos de visão, esta não é uma mobília bem comportada, um sofá em esquadro, é um ponto de interrogação no meio da sala, a exigir dos outros idêntica dinâmica.
E esta dinâmica os outros, enquanto maioria, não têm, e não querem ter. Porque esta dinâmica assusta.
Mas antes de vermos por que assusta, quero fazer um desvio e dizer que, se todos sofrem violenta repressão às suas mudanças, nós mulheres sofremos muito mais. Em nó a mudança é logo vista como futilidade, como falta de segurança. “la donna è mobile, qual piuma al vento”, diz a ária de ópera ( “ a mulher é móvel, como pluma levada pelo vento”). Ou seja, vai onde o vento sopra, onde é levada e não onde deseja ir, onde sua inteligência lhe diz que é o lugar. Mudanças de opinião, em nós mulheres, são vistas com maior espanto, porquanto é tido como certo que não temos opinião alguma, e então, como mudar o que não existe? Hoje até o fato de reivindicarmos o direito de ter opinões aparece como uma mudança. E o quanto assusta estarmos vendo por aí nas reações da nossa sociedade ainda tão machista.
Feito o desvio, apreciada a paisagem que parece lateral mas que para nós é talvez a mais importante, vamos voltar ao medo que mudar de opinião desperta em todos nós
Sim, todos nós temos dificuldade em pegar uma idéia que já tínhamos e esquartejá-la, minuciosamente estudar-lhe as víceras, para depois decidir se é o caso de recompô-la ou de transformar o exame em autópsia e enterrar logo o cadáver. Todos nós hesitamos. Por quê?
a - Porque poucas coisas são tão confortáveis quanto uma idéia velha. É feito chinelo que o pé já conhece, gato manso que acariciamos sem olhar. Assim a idéia que já está conosco há muito tempo. Sabemos de cor seus desvãos, seus argumentos. Não precisamos quase raciocinar para defendê-la, basta desfiar o rosário das frases com que a estruturamos ao longo dos anos, ou repetir os conceitos de que ela veio acompanhada quando nos foi vendida. Uma idéia já conhecida e explorada não nos causa ansiedade, não nos ameaça, vem mansamente ao trote quando a convocamos, dócil cavalo de batalha, e se insere sem alarde entre as outras rotinas da nossa vida. Uma idéia velha não nos exige.
b - Abrir mão, seja do que for, sempre é difícil. E mais difícil fica no caso das opiniões, quando, freqüentemente, sobre elas outras coisas foram construídas. Abrir mão de uma opinião raramente significa abrir mão apenas dela, mas sim dela e de outras que lhe são ligadas, e, em cadeia, de um determinado comportamento. Abrir mão de uma opinião é, em última análise, abrir mão de um pedaço de si. Se, por exemplo, consideramos que ir à praia topless é uma indecência, ao mudarmos de opinião não estamos mudando somente em relação à parte de cima do biquini, mas sim à exibição do corpo, ao direito sobre esse corpo, à relação desse direito confrontado com as expectativas do nosso grupo social, e ao próprio conceito de decência. É uma mudança grande, bem maior do que parece à primeira vista, e nada mais natural do que hesitar diante dela.
c – Toda mudança causa conflito. Até a idéia de vender o carro usado e comprar um novo nos transtorna. E isto porque toda mudança implica um avaliação, julgamento. Se vou trocar meu carro, preciso saber se o antigo era bom, e, sendo bom, se era melhor do que as marcas todas que a publicidade tenta me impingir, se houve alterações no mercado, e quais as minhas possibilidades aquisitivas. Enfim, preciso analisar vários dados e confrontá-los. Um processo idêntico ocorre em relação às opiniões. Para trocar uma opinião por outra, preciso confrontar as duas, julgar sua validade decidir qual me parece melhor. Esse julgamento, essa decisão ao salto, assusta.
d – Se hoje penso de um jeito a respeito de determinada coisa e amanhã decido mudar, será necessário reconhecer que meu pensamento estava errado, ou que, pelo menos, tornou-se errado em determinado momento. Será preciso reconhecer meu próprio erro. E quantos gostam disso?
e – Uma opinião importante é um modo de ser e de viver. Nossos amigos, nosso grupo, nossos parentes estão acostumados com nossas opiniões. Mudar uma opinião significa muitas vezes ter que enfrentar o nosso grupo. E sabemos que o grupo tudo fará para nos manter como éramos, do jeito que já nos conheciam, nos aceitavam, do jeito que tornou possível nosso entrosamento. A mudança de um dos elementos do grupo é vivida pelo grupo como ameaça de desintegração, de modificação generalizada, e é conseqüentemente combatida. Sabemos portanto que mudar de opinião nos exigirá trabalho, explicações, discussões. Uma luta, enfim, pequena ou grande, mas luta, uma oposição às pessoas que mais queremos.
f - E numa luta, por menor que seja, temos sempre duas possibilidades: ganhá-la ou perdê-la. Podemos, por causa de uma opinião, perder o afeto ou até a estima de pessoas a nós ligadas. Podemos dialogar, convencer, mas corremos sempre o risco de subitamente perder a aceitação do outro e abrir distâncias insuperáveis. O medo dessa possível perda está presente, ainda que nem sempre conscientizado, ao enfrentarmos o processo de uma mudança de opinião.
g – E outro medo se engancha no nosso pé. O medo do desconhecido. Abro mão da idéia velha, meu confortável chinelo, em troca de uma idéia nova. Não só terei que amaciá-la, e a mim com ela, mas terei que reorganizar minhas idéias todas, rever o resto. E certamente sairei mudada, ainda que pouco apenas, ainda que parcialmente. Que eu mudada serei então? Não sei, não tenho como saber. E o não saber me assusta.
De tanto falar em medos, estou aqui quase espalhando o pânico. Que essa conversa sirva para o entendimento, mas não nos assuste. São vários medos, mas enfeixados em um só, e não tão forte a ponto de impedir que as opiniões mudem constantemente.
Tivemos medo, e quanto! Galileu apareceu afirmando que a Terra não só não era fixa, como girava em torno do Sol. Afinal, Ptolomeu noa havia convendido do contrário, e a teoria dele era mais bonita, nos conferia mais importância, com o sol girando ao nosso redor servilmente. Galileu foi processado, ameaçado de morte. Mas aos poucos acabamos mudando de opinião e acatando sua frase murmurada: “ Eppur si muove!” ( e no entanto se mexe!) Hoje, até o Vaticano revê seu processo.
O Novo Testamento mudou opiniões formadas pelo Velho. E, não fosse a onisciência, até Deus teria mudado sua opinião em relação a Adão e a Eva depois do fato da maçã. Enfim, a nossa história é a história das nossas mudanças de opinião.
“ Quem pretende uma felicidade e uma sabedoria constante deveria acomodar-se a freqüentes mudanças”, dizia Confúcio. O problema é que às vezes, embora pretendendo a felicidade, não queremos nos adaptar. Duvido, por exemplo, que o próprio Confúcio, machista convicto que defenia a mulher como “um homem inferior” e que estabeleceu um violento esquema de dominação da mulher na China, conseguisse aceitar colocações mais feministas, as mesmas que hoje estão criando uma modificação radical de comportamento.
Esquecidas das enormes mudanças de que fazemos parte relutamos às vezes em mudar uma nossa pequena opinião. Mas por que estaríamos condenadas à prisão de idéias gradeadas, se tudo ao redor anda?
Mudar nossa opinião em relação à conduta sexual, por exemplo, é uma mudança individual. Mas é também parte da grande mudança coletiva que a sociedade ocidental vem nas últimas décadas formulando e que já chamamos Revolução Sexual. E o mesmo acontece quando repensamos nossa relação com as minorias, ou quando simplesmente decidimos parar de comer aqueles mesmos enlatados que tanto nos seduziam. Mudamos individualmente, e individualmente corremos os riscos de mudança, mas nosso comportamento e nossa escolha se inserem no conjunto mais amplo.
Precursoras, podemos viver nossa mudança em solidão, precisando de mais energia para derrubar a reação ainda compacta contra nosso gesto. Ou, mais prudentes, chegamos à mudança quando um maior número de evidências se acumula e já encontramos vozes em que nos apoiar. Tempo e momento, cada um faz o seu. Importante é a convicção.
Taí uma palavra sem a qual se invalida tudo o que dissemos: convicção. Esta é alavanca fundamental para qualquer, verdadeira, mudança de opinião. Mudar de opinião por insegurança, para acompanhar os outros, para não ficar por fora, pode fazer de nós figuras patéticas.
Mas opinião não é honra, opinião não é jura, opinião não é sobrenome, carga genética, nada que não se possa mudar. Se hoje você diz uma coisa, e amanhã percebe que não concorda mais com o que disse, pode não se tratar de inconstância, mas de lucidez. Isso, é claro, se depois de amanhã você não pensar de outra maneira, e no dia seguinte tornar a mudar, como uma ventoinha.
O normal, o saudável é mudar. Como exemplo nos sirva o livro de Fernando Gabeira, Que é isso, companheiro?, cujo sucesso se deve em grande parte ao fato dele rever, pública e honestamente, suas opiniões vitais, seu comportamento, sua atuação política. Ao fazê-lo, ele se torna mais humano e próximo do que a imagem puramente heróica que dele se tinha.
Assim, também no amor nos tornamos mais acessíveis na medida em que somos capazes de rever nossas posições, e de mudá-las quando necessário. Temer que o outro viva nossas mudanças como fraquezas e delas se aproveite contra nós ou contra a relação, subjugando-nos, é não ter confiança no outro, nem em nós mesmas. E, nesse caso, tampouco adiantaria cravarmos os pés irredutivelmente numa única posição.
Mas, para mudar, é conveniente fazê-lo com justeza. E a justeza, onde está?
Não sei, nem ninguém sabe, pois é preciso desencavá-la a cada vez, entre pedras, cactos e tantos arremedos de justeza. Sei, talvez, como me armar para procurá-la melhor. É meu armamento individual, mas talvez sirva a outros.
Preciso, eu sei, ter confiança em mim, na minha capacidade de ver, no meu discernimento. Sempre haverá quem queira me demover, e com belos argumentos, cantos de sereia. Ao contrário de Ulisses que botou cera nos ouvidos para não ouví-los, eu deverei abrir bem os meus e deixar que entrem os cantos todos, para sopesá-los. A fé na minha balança, a mim cabe.
Sei que até o fato de eu ser mulher será em algum momento usado, direta ou indiretamente,para me demover.
Tentarão me convencer de que sou fraca, mais suscetível a engodos, inocente.Mas exatamente o fato de ser mulher me servirá de fortalecimento. Pois sei que por ser mulher que tenho que ser mais aguerrida, e por ser uma mulher que questiona sou mais lúcida do que tantos.
Preciso, eu sei, de dados. É com o conhecimento que consolido e comprovo minha sensibilidade. É com o conhecimento que construo argumentos. É com o conhecimento que armo o quadro e escolho as minhas tintas.
E tendo os dados, preciso do hábito da análise para saber interrogá-los.Se me acostumo a aceitar tudo o que me dizem, sem questionar, sem elaborar, será difícil, impossível quase, encontrar caminhos novos, que sejam os meus. A análise se afia na prática, no exercício diário, na observação de análises alheias. A análise é pôr em dúvida, submeter a exame, comparar. A análise é o jogo que realizamos entre a tese e antítese, para chegarmos à sintese. A análise é um dos mais comoventes exercícios da mente.
Tendo fé em mim, tendo os dados e a capacidade de análise, que não me falte ainda assim a humildade de pedir explicações. Não entender, ou entender mal, é direito do qual não abro mão. E é contingência da qual não devo me envergonhar. Quando alguma verdade ou suposta verdade me for servida em belo prato, nunca começar a comê-la sem antes verificar os ingredientes de que se compõe.
Assim talvez seja mais possível o acerto nessa galeria de espelhos que o mundo se esmera em fabricar para nós. Assim, pelo menos, mesmo errando, poderei chegar a uma conclusão que seja a minha, e que eu tenha não só forças como prazer em defender.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

LÁGRIMAS OCULTAS


LÁGRIMAS OCULTAS
Florbela Espanca ( Livro de Mágoas)



Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era q'rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das Primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

VOLÚPIA


Volúpia
Florbela Espanca ( livro Charneca em flor)

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade...
A núvem que arrastou o vento norte...
--- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...

domingo, 3 de janeiro de 2010

A SERENATA


A Serenata Adélia Prado

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que ele vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

sábado, 2 de janeiro de 2010

DE UM LADO CANTAVA O SOL


DE UM LADO CANTAVA O SOL Cecília Meireles

De um lado cantava o sol,

do outro, suspirava a lua.

No meio, brilhava a tua

face de ouro, girassol!



Ó montanha da saudade

a que por acaso vim:

outrora, foste um jardim,

e és, agora, eternidade!

De longe, recordo a cor

da grande manhã perdida.

Morrem nos mares da vida

todos os rios do amor?



Ai! celebro-te em meu peito,

em meu coração de sal,

Ó flor sobrenatural,

grande girassol perfeito!



Acabou-se-me o jardim!

Só me resta, do passado,

este relógio dourado

que ainda esperava por mim...