terça-feira, 26 de outubro de 2010

AFINAL...


AFINAL... Àlvares de Campos ( Fernando Pessoa)
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordianariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
quanto mais personalidade eu tiver,
quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
estiver, sentir, viver, for,
mais possuirei a existência total do universo,
mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
e fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
cada alma é um corredor-Universo para Deus,
cada alma é um rio correndo por margens de Externo
para Deus e em deus como um sussurro soturno.
Sursum Corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito ,
Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum Corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
as coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam
com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.
Sursum Corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,
escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.
Sursum Corda! Ó Terra, jardim suspenso, nerço
que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!


Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis
Num rito anterior a todas as significações,
num grande culto em tumulto pelas montanhas e vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
À tua própria vontade transtornadora e eterna!



Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!
Sursum Corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!
Tudo um mim como um satélite da tua dinâmica íntima
Voltei serpenteando, ficando como um anel
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,
e, torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre.



Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,
A vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, não quebrem meu ser, não partam meu corpo,
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.
Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo,
tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
no vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo
mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.


Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima.
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
a minha inteligência limitadora e gelada.
Sou uma grande máquina movida por grandes correias
de que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
o resto vai além dos astros, passa para além dos sóis,
e nunca parece chegar ao tambor donde parte...
Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
cruzando-se em todas as direções com outros volantes,
que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço
Mas não sei onde espacial de uma ou outra maneira-Deus.
Dentro de mim estão presos e atados ao chão
todos os movimentos que compõem o universo.
A fúria minuciosa e dos atomos,
a fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
a espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,
A chuva com pedras atiradas de catapultas
de enormes exércitos de anões escondidos no céu.



Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilibrio
de estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

ENCARNAÇÃO INVOLUNTÁRIA


Encarnação Involuntária Clarice Lispector

Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdôo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso eu não queira o retorno a mim mesmo.

Um dia, no avião... ah, meu Deus – implorei - isso não, não quero ser missionária!

Mas era inútil. Eu sabia que, por causa de três horas de sua presença, eu por vários dias seria missionária. A magreza e a delicadeza extremamente polida de missionária já me haviam tomado. É com curiosidade, algum deslumbramento e cansaço prévio que sucumbo à vida que vou experimentar por uns dias viver. E com alguma apreesão, do ponto-de-vista prático: ando agora muito ocupada demais com os meus deveres e prezeres para poder arcar com o peso dessa vida que não conheço – mas cuja tensão evangelical já começo a sentir. No avião mesmo percebo que já comecei a andar com esse passo de santa leiga: então compreendo como a missionária é paciente, como se apaga com esse passo que mal quer tocar no chão, como se pisar mais forte viesse prejudicar os outros. Agora sou pálida, sem nenhuma pintura nos lábios, tenho o rosto fino e uso aquela espécie de chapéu de missionária.

Quando eu saltar em terra provavelmente já terei esse ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma-missão. E no meu rosto estará impressa a doçura da esperança moral. Porque sobretudo me tornei toda sadiamente amoral. Estava, não, estou! Grito-me eu em revolta contra os preconceitos da missionária. Inútil: toda a minha força está sendo usada para eu conseguir ser frágil. Finjo ler uma revista, enquanto ela lê a Bíblia.

Vamos ter uma descida curta em terra. O aeromoço distribui chicletes. E ela cora mal o rapaz se aproxima.

Em terra sou uma missionária ao vento do aeroporto, seguro minhas imaginárias saias longas e cinzentas contra o despudor do vento. Entendo, entendo. Entendendo-a, ah, como a entendo e ao seu pudor de existir quando está fora das horas em que cumpre sua missão. Acuso, como a missionariazinha, as saias curtas das mulheres, tentação para os homens. E, quando não entendo, é com o mesmo fanatismo depurado dessa mulher pálida que facilmente cora à aproximação do rapaz que nos avisa que devemos prosseguir viagem.

Já sei que só daí a dias conseguirei recomeçar enfim integralmente a minha própria vida. Que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, se não no momento de nascer, e o resto tenha sido encarnações. Mas não: eu sou uma pessoa. E quando o fantasma de mim mesma me toma - então é um tal encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra. Depois enxugamos as lágrimas felizes, meu fantasma se incorpora plenamente em mim, e saímos com alguma altivez por esse mundo afora.

Uma vez, também em viagem, encontrei uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando os olhos e estes ao mesmo tempo olhavam fixamente um homem que já estava sendo hipnotizado. Passei imediatamente, para melhor compreender, a fumar de olhos entrefechados para o único homem ao alcance de minha visão intencionada. Mas o homem gordo que eu olhara para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais. Falhou tudo.

domingo, 24 de outubro de 2010

VOZ QUE SE CALA


VOZ QUE SE CALA florbela Espanca

Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera que entende a voz do muro,
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e é pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!...

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

DESPEDIDAS

Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.

Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!

Nada mais é gratuito, tudo é ritual
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.

Affonso Romano de S'Antana


quarta-feira, 25 de agosto de 2010

sexta-feira, 30 de julho de 2010

OUTRO TIPO DE MULHER NUA


OUTRO TIPO DE MULHER NUA MARTHA MEDEIROS
Depois da invenção do photoshop, até a mais insignificante das criaturas vira uma deusa, basta uns retoquezinhos, aqui e ali. Nunca vi tanta mulher nua.Os sites da internet renovam semanalmente seu estoque de gatas vertiginosas.O que não falta é candidata para tirar a roupa. Dá uma grana boa.E o namorado apóia, o pai fica orgulhoso, a mãe acha um acontecimento, as amigas invejam, então pudor pra quê?Não sei se os homens estão radiantes com esta multiplicação de peitos e bundas. Infelizes não devem estar, mas duvido que algo que se tornou tão banal ainda enfeitice os que têm mais de 14 anos.Talvez a verdadeira excitação esteja, hoje, em ver uma mulher se despir de verdade... Emocionalmente.Nudez pode ter um significado diferente e muito mais intenso.É assistir a uma mulher desabotoar suas fantasias, suas dores, sua história.É erótico uma mulher que sorri, que chora, que vacila, que fica linda sendo sincera, que fica uma delícia sendo divertida, que deixa qualquer um maluco sendo inteligente.Uma mulher que diz o que pensa, o que sente e o que pretende, sem meias-verdades, sem esconder seus pequenos defeitos.Aliás, deveríamos nos orgulhar de nossas falhas, é o que nos torna humanas, e não bonecas de porcelana.Arrebatador é assistir ao desnudamento de uma mulher em que sempre se poderá confiar, mesmo que vire ex, mesmo que saiba demais.Pouco tempo atrás, posar nua ainda era uma excentricidade das artistas, lembro que se esperava com ansiedade a revista que traria um ensaio de Dina Sfat, por exemplo.- pra citar uma mulher que sempre teve mais o que mostrar além do próprio corpo.Mas agora não há mais charme nem suspense, estamos na era das mulheres coisificadas, que posam nuas porque consideram um degrau na carreira. Até é. Na maioria das vezes, rumo à decadência. Escadas servem para descer também.Não é fácil tirar a roupa e ficar pendurada numa banca de jornal, mas, difícil por difícil, também é complicado abrir mão de pudores verbais, expor nossos segredos e insanidades, revelar nosso interior.Mas é o que devemos continuar fazendo.Despir nossa alma e mostrar pra valer quem somos, o que trazemos por dentro. Não conheço strip-tease mais sedutor.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

O CÂNTICO DA TERRA


O Cântico da Terra ( Cora Coralina)

Hino do Lavrador



Eu sou a terra, eu sou a vida.

Do meu barro primeiro veio o homem.

De mim veio a mulher e veio o amor.

Veio a árvore, veio a fonte.

Vem o fruto e vem a flor.


Eu sou a fonte original de toda vida.

Sou o chão que se prende à tua casa.

Sou a telha da coberta de teu lar.

A mina constante de teu poço.

Sou a espiga generosa de teu gado

e certeza tranqüila ao teu esforço.

Sou a razão de tua vida.

De mim vieste pela mão do Criador,

e a mim tu voltarás no fim da lida.

Só em mim acharás descanso e Paz.


Eu sou a grande Mãe Universal.

Tua filha, tua noiva e desposada.

A mulher e o ventre que fecundas.

Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.



A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.

Teu arado, tua foice, teu machado.

O berço pequenino de teu filho.

O algodão de tua veste

e o pão de tua casa.


E um dia bem distante a mim tu voltarás.

E no canteiro materno de meu seio

tranqüilo dormirás.


Plantemos a roça.

Lavremos a gleba.

Cuidemos do ninho,

do gado e da tulha.

Fartura teremos

e donos de sítio

felizes seremos.




Fragmento de Anais Lin




A vida de todos os dias não me interessa. Procuro apenas os momentos elevados. Estou de acordo com os surrealistas quanto à procura do maravilhoso.


Quero ser uma escritora que lembre aos outros que estes momentos existem. Quero provar que existe um espaço infinito, um sentido infinito para as coisas, uma dimensão infinita.


Mas não estou naquilo que se pode chamar de estado de graça. Tenho dias de iluminação e febre. Há dias em que a música para na minha cabeça. Então remendo peúgas, limpo árvores, apanho frutos, dou brilho ao mobiliário, mas enquanto faço isto sinto que não vivo.


- Anais Nin

domingo, 18 de julho de 2010

PORQUE AS PESSOAS ESCREVEM?

by leonidafremov

Por que as pessoas escrevem? Já me fiz tantas vezes esta pergunta que hoje posso respondê-la com a maior facilidade. Elas escrevem para criar um mundo no qual possam viver. Nunca consegui viver nos mundos que me foram oferecidos: o dos meus pais, o mundo da guerra, o da política. Tive de criar o meu, como se cria um determinado clima, um país, uma atmosfera onde eu pudesse respirar, dominar e me recriar a cada vez que a vida me destruísse. Esta é a razão de toda obra de arte.Só o artista sabe que o mundo é uma criação subjetiva, que é preciso escolher, selecionar. A obra é a concretização, a encarnação do seu mundo interior. Ele espera impor sua visão pessoal, partilhá-la com os outros. Se não atinge esta última finalidade, o verdadeiro artista persiste assim mesmo. Os poucos momentos de comunhão com o mundo valem esse sofrimento, pois finalmente esse mundo foi criado para os outros como um legado, como um dom destinado a eles.Também escrevemos para aprofundar o nosso conhecimento de vida. Para atrair, encantar e consolar. Escrevemos para acalentar nossos amantes. Para degustar em dobro a vida: no momento preciso e retrospectivamente, na sua lembrança. Escrevemos, como Proust, para tornar as coisas eternas e para nos convencermos de que elas o são. Para podermos transcender nossa vida e alcançarmos o que existe além dela. Escrevemos para aprender a falar com os outros, para testemunhar nossa viagem ao labirinto. Para abrir, expandir nosso mundo quando nos sentimos sufocados, oprimidos ou abandonados. Escrevemos como os pássaros cantam, como os primitivos dançam seus rituais. Se você não respira quando escreve, não grita, não canta, então não escreva porque sua literatura será inútil. Quando não escrevo, meu universo se reduz; sinto-me numa prisão. Perco minha chama, minhas cores. Escrever deve ser uma necessidade, como o mar precisa das tempestades – é a isto que eu chamo de respirar.
- Anais Nin

sexta-feira, 16 de julho de 2010

IRACEMA


Iracema (1865) “uma história de bardo indígena, contada aos irmãos, à porta da cabana, aos últimos raios do sol “que se entristece”. A conclusão a tirar daqui é que o autor houve-se nisto com uma ciência e uma consciência para as quais todos os louvores são poucos.... as mulheres de seus livros trazem sempre um cunho de originalidade, de delicadeza e de graça, que se nos gravam logo na memória e no coração. Iracema é da mesma família. Em poucas palavras descreve o poeta a beleza física daquela Diana selvagem. ..A filha do Pagé, espécie de Vestal indígena, vigia do segredo da Jurema, é um complexo de graças e de paixão, de beleza e de sensibilidade, de casta reserva e de amorosa dedicação. Realça-lhe a beleza nativa a poderosa paixão do amor selvagem, do amor que procede da virgindade da natureza, participa da independência dos bosques, cresce na solidão, alenta-se do ar agreste da montanha... (Machado de Assis).





José de Alencar
Cantata de Iracema
Arranjo em estrofes, do capítulo inicial de
Iracema, sem acréscimo ou diminuição de uma vírgula,

por Soares Feitosa ( fragmento - parte inicial do romance)

Verdes mares bravios de minha terra natal,
onde canta a jandaia
nas frondes da carnaúba;
verdes mares, que brilhais
como líquida esmeralda
aos raios do sol nascente,
perlongando as alvas praias
ensombradas de coqueiros.

Serenai, verdes mares e alisai
docemente a vaga impetuosa,
para que o barco do aventureiro
manso resvale à flor das águas.
Onde vai a afoita jangada,
que deixa rápida a costa cearense, aberta
ao fresco terral a grande vela?
..................
...........
.....
...

Além,
muito além
daquela serraque ainda azula
no horizonte, nasceu
Iracema.

Iracema,
a virgem
dos lábios de mel, que tinha os cabelos
mais negros
que a asa da graúna
e mais longos
que seu talhe de palmeira.
O favo do jati não era
doce como seu sorriso;
nem a baunilha recendia
no bosque como seu hálito
perfumado.

Mais rápida que a ema
selvagem, a morena virgem
corria o sertão e as matas
do Ipu, onde
campeava sua guerreira tribo,
da grande nação tabajara.
O pé, grácil e nu,
mal roçando,
alisava
apenas a verde pelúcia
que vestia terra com as primeiras águas.

Um dia, ao pino o sol,

ela repousava em um claro

da floresta.
Banhava-lhe
o corpo a sombra da oiticica,
mais fresca do que o orvalho da noite.
Os ramos da acácia silvestre
esparziam flores sobre
os úmidos cabelos.

Escondidos na folhagem
os pássaros
ameigavam o canto.

Iracema saiu do banho; o aljôfar
d'água ainda a rorejava,
como à doce mangaba que corou
em manhã de chuva.

Enquanto repousa, empluma
das penas do gará as flechas
de seu arco e concerta
com o sabiá
da mata
pousado no galho próximo,
o canto agreste.
A graciosa ará, sua companheira
e amiga, brinca
junto dela.

Às vezes sobe aos ramos
da árvore e de lá chama
a virgem
pelo nome;
outras, remexe o uru
de palha matizada,
onde traz a selvagem seus perfumes;
os alvos fios de crautá,
as agulhas de juçara com que tece
a renda,
e as tintas
de que matiza o algodão.

Rumor suspeito
quebra
a doce harmonia
da sesta.
Ergue a virgem os olhos,
que o sol não deslumbra;
sua vista perturba-se.

Diante dela
e todo
a contemplá-la,
está
um guerreiro estranho,
se é guerreiro e não
algum mau espírito
da floresta.

Tem nas faces o branco
das areias que bordam o mar,
nos olhos
o azul triste das águas
profundas.
Ignotas armas
e ignotos tecidos cobrem-lhe
o corpo.

Foi rápido, como o olhar,
o gesto de Iracema.
A flecha
embebida no arco partiu.
Gotas de sangue borbulham
na face
do desconhecido.

De primeiro ímpeto,
a mão lesta caiu
sobre
a cruz da espada.

O moço guerreiro aprendeu
na religião de sua mãe, onde
a mulher
é símbolo
de ternura e amor.
Sofreu mais
d'alma do que da ferida.
O sentimento que ele pôs
nos olhos e no rosto
não o sei eu.
Porém a virgem lançou
de si o arco e a uiruçaba, e correu
para o guerreiro, sentida
da mágoa que causara.
A mão que rápida ferira,
estancou mais rápida
e compassiva
o sangue que gotejava.

Depois Iracema quebrou a flecha homicida;
deu a haste ao desconhecido,
guardando consigo a ponta farpada.

O guerreiro falou:
— Quebras comigo a flecha da paz?
— Quem te ensinou, guerreiro branco,
a linguagem
de meus irmãos?
Donde a estas matas,
que nunca viram
outro guerreiro como tu?

— Venho de bem longe,
filha das florestas.
Venho das terras
que teus irmãos já possuíram,
e hoje têm os meus.

— Bem vindo seja o estrangeiro
aos campos dos tabajaras,
senhores das aldeias, e à cabana
de Araquém,
pai de Iracema.

UM HOMEM INTELIGENTE


UM HOMEM INTELIGENTE ( Recebi como sendo de Luis Fernado Veríssimo, mas não confirmo a autoria...)
O desrespeito à natureza tem afetado a sobrevivência de vários seres e entre os mais ameaçados está a fêmea da espécie humana. Tenho apenas um exemplar em casa,que mantenho com muito zelo e dedicação, mas na verdade acredito que é ela quem me mantém. Portanto, por uma questão de auto-sobrevivência, lanço a campanha 'Salvem as Mulheres!'

Tomem aqui os meus poucos conhecimentos em fisiologia da feminilidade a fim de que preservemos os raros e preciosos exemplares que ainda restam:

Habitat Mulher não pode ser mantida em cativeiro. Se for engaiolada, fugirá ou morrerá por dentro. Não há corrente que as prenda e as que se submetem à jaula perdem o seu DNA. Você jamais terá a posse de uma mulher, o que vai prendê-la a você é uma linha frágil que precisa ser reforçada diariamente.

Alimentação correta Ninguém vive de vento. Mulher vive de carinho. Dê-lhe em abundância. É coisa de homem, sim, e se ela não receber de você vai pegar de outro.

Beijos matinais e um 'eu te amo’ no café da manhã as mantém viçosas e perfumadas durante todo o dia. Um abraço diário é como a água para as samambaias. Não a deixe desidratar.

Pelo menos uma vez por mês é necessário, senão obrigatório, servir um prato especial.

Flores Também fazem parte de seu cardápio – mulher que não recebe flores murcha rapidamente e adquire traços masculinos como rispidez e brutalidade.

Respeite a natureza Você não suporta TPM? Case-se com um homem. Mulheres menstruam, choram por nada, gostam de falar do próprio dia, discutir a relação? Se quiser viver com uma mulher, prepare-se para isso.

Não tolha a sua vaidade É da mulher hidratar as mechas, pintar as unhas, passar batom, gastar o dia inteiro no salão de beleza, colecionar brincos, comprar muitos sapatos, ficar horas escolhendo roupas no shopping. Entenda tudo isso e apoie.

Cérebro feminino não é um mito Por insegurança, a maioria dos homens prefere não acreditar na existência do cérebro feminino. Por isso, procuram aquelas que fingem não possuí-lo (e algumas realmente o aposentaram!).

Então, aguente mais essa: mulher sem cérebro não é mulher, mas um mero objeto de decoração. Se você se cansou de colecionar bibelôs, tente se relacionar com uma mulher. Algumas vão lhe mostrar que têm mais massa cinzenta do que você. Não fuja dessas, aprenda com elas e cresça. E não se preocupe, ao contrário do que ocorre com os homens, a inteligência não funciona como repelente para as mulheres. Não faça sombra sobre ela.

Se você quiser ser um grande homem tenha uma mulher ao seu lado, nunca atrás. Assim, quando ela brilhar, você vai pegar um bronzeado. Porém, se ela estiver atrás, você vai levar um pé-na-bunda.

Aceite: mulheres também têm luz própria e não dependem de nós para brilhar. O homem sábio alimenta os potenciais da parceira e os utiliza para motivar os próprios. Ele sabe que, preservando e cultivando a mulher, ele estará salvando a si mesmo.

É, meu amigo, se você acha que mulher é caro demais, vire gay. Só tem mulher quem pode!

A MULHER SELVAGEM

( Sofia Loren)

A MULHER SELVAGEM - Ricardo Kelmer




Ela anda enjaulada, é verdade. Mas continua viva na alma das mulheres


Sua beleza é arisca, arredia aos modismos. Ela encanta por um não-sei-quê indefinível… mas que também agride o olhar. É um tipo raro e não tem habitat definido: vive em Catmandu, mora no prédio ao lado ou se mudou ontem para Barroquinha. E não deixou o endereço. É ela, a mulher selvagem.


Em quase tudo ela é uma mulher comum: pega metrô lotado, aproveita as promoções, bota o lixo para fora e tem dia que desiste de sair porque se acha um trapo. Porém em tudo que faz exala um frescor de liberdade. E também dá arrepios: você tem a impressão que viu uma loba na espreita. Você se assusta, olha de novo… e quem está ali é a mulher doce e simpática, ajeitando dengosa o cabelo, quase uma menininha. Mas por um segundo você viu a loba, viu sim. É a mulher selvagem.


A sociedade tenta mas não pode domesticá-la, ela se esquiva das regras. Quando você pensa que capturou, escapole feito água entre os dedos. Quando pensa que finalmente a conhece, ela surpreende outra vez. Tem a alma livre e só se submete quando quer. Por isso escolhe seus parceiros entre os que cultuam a liberdade. E como os reconhece? Como toda loba, pelo cheiro, por isso é bom não abusar de perfumes. Seu movimento tem graça, o olhar destila uma sensualidade natural… mas, cuidado, não vá passando a mão. Ela é um bicho, não esqueça. Gosta de afago mas também arranha.


Repare que há sempre uma mecha teimosa de cabelo: é o espírito selvagem que sopra em sua alma a refrescante sensação de estar unida à Terra. É daí que vem sua força e beleza. E sua sabedoria instintiva. Sim, ela é sábia pois está em harmonia com os ritmos da Natureza. Por isso conhece a si mesma, sabe dos seus ciclos de crescimento e não sabota a própria felicidade. Como todo bicho ela respeita seu corpo mas nem sempre resiste às guloseimas. Riponga do mato, gabriela brejeira? Não necessariamente, a maioria vive na cidade. E há dias paquera aquele pretinho básico da vitrine. E adora dançar em noite de lua. Ah, então é uma bruxa… Talvez, ela não liga para rótulos. Sabe que a imensidão do ser não cabe nas definições.


Mulheres gostam de fazer mistério. Ela não, ela é o mistério. Por uma razão simples: a mulher selvagem sabe que a vida é uma coisa assombrosa e perfeita e viver é o mais sagrado dos rituais. Ela sente as estações e se movimenta com os ventos, rindo da chuva e chorando com os rios que morrem. Coleciona pedrinhas, fala com plantas e de uma hora para outra quer ficar só, não insista. Não, ela não é uma esotérica deslumbrada mas vive se deslumbrando: com as heroínas dos filmes, aquela livraria nova, um presente inesperado… Ela se apaixona, sonha acordada e tem insônia por amor. As injustiças do mundo a angustiam mas ela respira fundo e renova sua fé na humanidade. Luta todos os dias por seus sonhos, adormece em meio a perguntas sem respostas e desperta com o sussurro das manhãs em seu ouvido, mais um dia perfeito para celebrar o imenso mistério de estar vivo.


Ela equilibra em si cultura e natureza, movendo-se bela e poética entre os dois extremos da humana condição. Ela é rara, sim, mas não é uma aberração, um desvio evolutivo. Pelo contrário: ela é a mais arquetípica e genuína expressão da feminilidade, a eterna celebração do sagrado feminino. Ela está aí nas ruas, todos os dias. A mulher selvagem ainda sobrevive em todas as mulheres mas a maioria tem medo e a mantém enjaulada. Ela é o que todas as mulheres são, sempre foram, mas a grande maioria esqueceu.


Felizmente algumas lembraram. Foram incompreendidas, sim, mas lamberam suas feridas e encontraram o caminho de volta à sua própria natureza. Esta crônica é uma homenagem a ela, a mulher selvagem, o tipo que fascina os homens que não têm medo do feminino. Eles ficam um pouco nervosos, é verdade, quando de repente se vêem frente a frente com um espécime desses. Por isso é que às vezes sobem correndo na primeira árvore. Mas é normal. Depois eles descem, se aproximam desconfiados, trocam os cheiros e aí… Bem, aí a Natureza sabe o que faz.


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sábado, 27 de março de 2010

Água Viva - Lispector




Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago. Só que aquilo que capto em mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero seu fluxo.Nova era, esta minha, e ela me anuncia para já. Tenho coragem? Por enquanto estou tendo: porque venho do sofrido longe, venho do inferno de amor mas agora estou livre de ti. Venho do longe - de uma pesada ancestralidade. Eu que venho da dor de viver. E não a quero mais.
Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mozart. Mas quero também a inconseqüência. Liberdade? é o meu último refúgio, forcei-me à liberdade e agüento-a não como um dom mas com heroísmo: sou heroicamente livre. E quero o fluxo.
Não é confortável o que te escrevo. Não faço confidências. Antes me metalizo. E não te sou e me sou confortável; minha palavra estala no espaço do dia. O que saberás de mim é a sombra da flecha que se fincou no alvo. Só pegarei inutilmente uma sombra que não ocupa lugar no espaço, e o que apenas importa é o dardo.
Construo algo isento de mim e de ti - eis a minha liberdade que leva à morte. Neste instante-já estou envolvida por um vagueante desejo difuso de maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água que corre da bica na relva de um jardim todo maduro de perfumes, jardim e sombras que invento já e agora e que são o meio concreto de falar neste meu instante de vida. Meu estado é o de jardim com água correndo. Descrevendo-o tento misturar palavras para que o tempo se faça. O que te digo deve ser lido rapidamente como quando se olha.
Clarice Lispector - Trecho de Água Viva

quinta-feira, 4 de março de 2010

FELICIDADE CLANDESTINA


Felicidade Clandestina Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era da paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoávelmete bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo.Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. e completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico.No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguine. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei . Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, à vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas.Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perverdidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abrio-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O PRIMEIRO BEIJO

( O Corpo Nu by Auguste Rodin)


O PRIMEIRO BEIJO

Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar?
Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! Como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento do deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, talvez horas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos, estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada.
O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados, entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga.
Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é da mulher que sai o líquido germinador de vida... Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva.
Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem.






Clarice Lispector In Felicidade Clandestina



domingo, 14 de fevereiro de 2010

AMOR E MEDO




Amor e medo ( Affonso Romano de S’Antana)

Estou te amando e não percebo,

porque, certo, tenho medo.

Estou te amando, sim, concedo,

mas te amando tanto

que nem a mim mesmo

revelo este segredo.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

CLARICE LISPECTOR BIOGRAFIA

Clarice nasce em Tchelchenik, na Ucrânia, em 1920. Chega ao Brasil com os pais e as duas irmãs aos dois meses de idade, instalando-se em Recife. A infância é envolta em sérias dificuldades financeiras. A mãe morre quando ela conta 9 anos de idade. A família então se transfere para o Rio de Janeiro, onde Clarice começa a trabalhar como professora particular de português. A relação professor/aluno seria um dos temas preferidos e recorrentes em toda a sua obra - desde o primeiro romance: Perto do Coração Selvagem. Ela estuda Direito, por contingência. Em seguida, começa a trabalhar na Agência Nacional, como redatora. No jornalismo, conhece e se aproxima de escritores e jornalistas como Antônio Callado, Hélio Pelegrino, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Alberto Dines e Rubem Braga. Os passos seguintes são o jornal A Noite e o início do livro Perto do Coração Selvagem - segundo ela, um processo cercado pela angústia. O romance a persegue. As idéias surgem a qualquer hora, em qualquer lugar. Nasce aí uma das características do seu método de escrita - anotar as idéias a qualquer hora, em qualquer pedaço de papel.
Em 43, conhece e casa-se com Maury Gurgel Valente, futuro diplomata. O casamento dura 15 anos. Dele nascem Pedro e Paulo. No ano seguinte, ela publica Perto do Coração Selvagem. Em plena Segunda Guerra Mundial, o casal vai para a Europa. Perto do Coração Selvagem desnorteia a crítica literaria. Há os que pretendem não compreender o romance, os que procuram influências - de Virgínia Wolf e James Joyce, quando ela nem os tinha lido - e ainda os que invocam o temperamento feminino. Influências?
Perto do Coração Selvagem recebe o prêmio da Fundação Graça Aranha. Nas palavras de Lauro Escorel, as características do romance revelam uma "personalidade de romancista verdadeiramente excepcional, pelos seus recursos técnicos e pela força da sua natureza inteligente e sensível". Já no primeiro livro, identifica-se o estilo muito pessoal da escritora. Nas páginas, Clarice explora pela primeira vez a solidão e a incomunicabilidade humana, através de uma prosa inquieta, próxima da poesia em determinados momentos.
Rumo à Europa, os Gurgel Valente passam por Natal. De lá para Nápoles. Já na saída do Brasil, Clarice mostra-se dividida entre a obrigação de acompanhar o marido e ter de deixar a família e os amigos. Quando chega à Itália, depois de um mês de viagem, escreve: "Na verdade não sei escrever cartas sobre viagens, na verdade nem mesmo sei viajar".
Clarice permanece em Nápoles até 1946. Durante a II Guerra, presta ajuda num hospital de soldados brasileiros. Uma dúvida: um serviço prestado como cidadã brasileira ou como mulher de um diplomata brasileiro? Como escritora, ela sente a presença do sucesso. Por telegrama, sabe do prêmio recebido pelo romance deixado no Brasil. Mantém uma correspondência constante com os amigos que deixara para trás. Em Nápoles, em 44, conclui O Lustre, livro iniciado no Brasil e que seria publicado em 1946. Virgínia, a personagem principal de O Lustre, tem a história narrada desde a infância e também aparece sob o signo do mal, tal como Joana, personagem do primeiro romance. Em O Lustre, Virgínia mantém um relacionamento incestuoso com o irmão, Daniel, com quem faz reuniões secretas em que experimentam verdades, na condição de iniciados especiais. Nessa época, Clarice Lispector se corresponde com Lúcio Cardoso, que não gosta do título do livro: acha-o "mansfieldiano" e um pouco pobre para pessoa tão rica como Clarice.
No fim da guerra, Clarice é retratada por De Chirico. Em maio de 45, ela manda uma carta às irmãs Elisa e Tânia, contando o encontro com o artista e falando sobre o final da guerra na Europa.
Quando O Lustre é lançado, Clarice está no Brasil, onde passa um mês. De volta à Europa, transfere-se para a Suiça, "um cemitério de sensações", segundo a escritora. Durante três anos, passa por dificuldades em relação à escrita e à vida pessoal. Em 46, tenta iniciar A Cidade Sitiada, livro que sairia em 49. Vendo-se impossibilitada de escrever, coleciona frases de Kafka, referentes a preguiça, impaciência e inspiração.
Para Clarice, a vida em Berna é de miséria existencial. A Cidade Sitiada acaba sendo escrito na Suíça. Na crônica "Lembrança de uma fonte, de uma cidade", Clarice afirma que, em Berna, sua vida foi salva por causa do nascimento do filho Pedro e por ter escrito um dos livros "menos gostados". Terminado o último capítulo, dá à luz. Nasce então um complemento ao método de trabalho. Ela escreve com a máquina no colo, para cuidar do filho.
O período na Suíça caracteriza-se pela saudade do Brasil, dos amigos e das irmãs. A correspondência que recebe não lhe parece suficiente. Até 52, escreveria contos, gênero em que Clarice Lispector talvez não tenha sido alcançada na literatura brasileira. Alguns Contos foi publicado em 52, quando ela já tinha deixado Berna, passado seis meses na Inglaterra e partido para os Estados Unidos, acompanhando o marido.
Em carta às irmãs, em janeiro de 47, de Paris, Clarice expõe seu estado de espírito... Em 95, o escritor Caio Fernando Abreu, então colunista do jornal O Estado de São Paulo, publicou uma carta que teria sido escrita por Clarice Lispector a uma amiga brasileira. Ele comenta, no artigo, que não há nada que comprove sua autenticidade, a não ser o estilo-não estilo de escrita de Clarice Lispector. Ele dizia: "A beleza e o conteúdo de humanidade que a carta contém valem a pena a publicação..."
Em 1950, na Inglaterra, Clarice inicia o esboço do que viria a ser A Maçã no Escuro, livro publicado em 61. Antes de se fixar em Washington ela passa pelo Brasil. Trabalha novamente em jornais, entre maio e setembro de 52, assinando a página "Entre Mulheres", no jornal O Comício, no Rio, sob o pseudônimo de Tereza Quadros. Em setembro vai para os Estados Unidos, grávida. Durante os oito anos de permanência no país, vem ao Brasil várias vezes. Em fevereiro de 53, nasce Paulo. Ela continua a escrever A Maçã no Escuro, em meio a conflitos domésticos e interiores. Mãe, Clarice Lispector divide seu tempo entre os filhos, A Maçã no Escuro, os contos de Laços de Família e a literatura infantil. O primeiro livro para crianças seria O Mistério do Coelhinho Pensante , uma exigência do filho Paulo. A obra ganharia o prêmio Calunga, em 67, da Campanha Nacional da Criança. Ela ainda escreveria três livros infantis: A Mulher que Matou os Peixes, A Vida Íntima de Laura e Quase de Verdade. Nos Estados Unidos, Clarice Lispector conhece Érico e Mafalda Veríssimo, dos quais torna-se grande amiga.
Veríssimo e família retornam ao Brasil em 56. Entre os escritores, inicia-se uma vasta correspondência. No primeiro semestre de 59, o casal Gurgel Valente decide-se pela separação. Clarice volta a morar no Rio de Janeiro, com os filhos. Sobre o "conciliar" casamento/literatura, afirmava que escrevia de qualquer maneira, mas o fato de cumprir o seu papel como mulher de diplomata sempre a enjoou muito. Cumpria a obrigação. Nada além. Na volta ao país, mais um período de dificuldades afetivas e financeiras. Ela prefere a solidão ao círculo que tinha relação com o ex-marido. O dinheiro que recebia como pensão não era suficiente, nem os recursos arrecadados com direitos autorais. Clarice retorna ao jornalismo. Escreve contos para revista Senhor, torna-se colunista do Correio da Manhã, em 59, e, no ano seguinte, começa a assinar a coluna Só para Mulheres, como "ghost writer" da atriz Ilka Soares no Diário da Noite. A atividade jornalística seria exercida até 1975. No final dos anos 60, Clarice faz entrevistas para a revista Manchete. Entre 67 e 73 mantém uma crônica semanal no Jornal do Brasil, e, entre 75 e 77, realiza entrevistas para a Fatos & Fotos.
A década de 60 principia com a publicação do livro de contos Laços de Família. Seguiriam-se as publicações de A Maçã no Escuro, em 61, livro que recebeu o Prêmio Carmen Dolores Barbosa, A Legião Estrangeira, em 62, e A Paixão Segundo G.H., em 64.
Uma escultora de classe alta, que mora num apartamento de cobertura num edifício do Rio, resolve arrumar o quarto de empregada, cômodo que supõe, seja o mais sujo da casa, o que não é verdade. O quarto é claro e límpido. Entre várias experiências desmistificatórias, a crucial: abre a porta do guarda-roupa e se vê diante de uma barata. Embora afirme que o livro não tem nada de experiência pessoal, admite que a obra fugira do seu controle...
Entre 65 e 67, Clarice dedica-se à educação dos filhos e com a saúde de Pedro, que apresenta um quadro de esquizofrenia, exigindo cuidados especiais. Apesar de traduzida para diversos idiomas e da republicação de diversos livros, a situação econômica de Clarice é muito difícil. Em setembro de 67, acontece o acidente que deixa marcas no corpo e na alma da escritora - um incêndio no quarto que ela tenta apagar com as mãos. Fica gravemente ferida, passa 3 dias entre a vida e a morte. Três dias definidos por ela como "estar no inferno."
Em 69, publica o romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Em 71, a coletânea de contos Felicidade Clandestina, volume que inclui O Ovo e a Galinha, escrito sob o impacto da morte do bandido Mineirinho, assassinado pela polícia com treze tiros, no Rio de Janeiro.
Os últimos anos de vida são de intensa produção: A Imitação da Rosa (contos) e Água Viva (ficção), em 1973; A Via Crucis do Corpo (contos) e Onde Estivestes de Noite, também contos, em 74. Visão do Esplendor (crônicas), em 75. Nesse ano, é convidada a participar, em Bogotá, do Congresso Mundial de Bruxaria. Sua participação limita-se à leitura do conto O Ovo e a Galinha. No ano seguinte, Clarice Lispector recebe o 1° prêmio do X Concurso Literário Nacional, pelo conjunto da obra.
Em 77, concede entrevista à TV Cultura, com o compromisso de só ser transmitida após a sua morte. Ela antecipa a publicação de um novo livro, que viria a se chamar A Hora da Estrela, adaptado para o cinema nos anos 80 por Suzana Amaral.
Clarice morre, no Rio, no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu 57° aniversário. Queria ser enterrada no Cemitério São João Batista, mas era judia. O enterro aconteceu no Cemitério Israelita do Caju. Postumamente, foram publicados Um Sopro de Vida, Para Não Esquecer e A Bela e a Fera.
Fonte: http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/clarice/clarice.htm

CORA CORALINA BIOGRAFIA

Cora Coralina (Ana Lins do Guimarães Peixoto Brêtas), é a grande poetisa do Estado de Goiás. Nasceu em Goiás Velho em 1889. Filha de Jacinta Luíza do Couto Brandão Peixoto e do Desembargador Francisco de Paula Lins dos Guimarães. Cora Coralina era chamada Aninha da Ponte da Lapa.

Tendo apenas instrução primária, em 1903, já escrevia poemas sobre seu cotidiano, tendo criado, juntamente com duas amigas, em 1908, o jornal de poemas femininos "A Rosa". Em 1910, seu primeiro conto, "Tragédia na Roça", é publicado no "Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás", já com o pseudônimo de Cora Coralina.

Em 1911 conhece o advogado divorciado Cantídio Tolentino Brêtas, com quem foge. Vai para Jaboticabal (SP), onde nascem seus seis filhos: Paraguaçu, Enéias, Cantídio, Jacintha, Ísis e Vicência.

Seu marido a proíbe de integrar-se à Semana de Arte Moderna, a convite de Monteiro Lobato, em 1922.

Em 1928 muda-se para São Paulo (SP). Com a morte do marido, Cora ficou ainda com três filhos para acabar de criar. Sem se deixar abater, vendeu livros em São Paulo, mudou-se para Penápolis, no interior do Estado, onde passou a vender linguiça caseira e banha de porco que ela mesma preparava. Mudou-se em seguida para Andradina.

Em 1934, torna-se vendedora de livros da editora José Olimpio Até que, em 1956, retornou para Goiás onde exercia a profissão de doceira.

Ao completar cinqüenta anos de idade, a poetisa sofreu uma profunda transformação em seu interior, que definiria mais tarde como a perda do medo. Nesta fase, deixou de atender pelo nome de batismo e assumiu o pseudônimo que escolhera para si muitos anos atrás.

Durante esses anos, Cora não deixou de escrever, produzindo poemas ligados à sua história, à ligação com a cidade em que nascera e ao ambiente em que fora criada.

Em 1965, lança seu primeiro livro, "O Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais" pela mesma editora da qual havia sido venderora. Em 1976, é lançado "Meu Livro de Cordel", pela editora Cultura Goiana. Em 1980, Carlos Drummond de Andrade, como era de seu feitio, após ler alguns escritos da autora, manda-lhe uma carta elogiando seu trabalho, a qual, ao ser divulgada, desperta o interesse do público leitor e a faz ficar conhecida em todo o Brasil.

Sintam a admiração do poeta, manifestada em carta dirigida a Cora em 1983:
"Minha querida amiga Cora Coralina: Seu "Vintém de Cobre" é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia ( ...).
"Editado pela Universidade Federal de Goiás, em 1983, seu novo livro "Vintém de Cobre - Meias Confissões de Aninha", é muito bem recebido pela crítica e pelos amantes da poesia.

Em 1984, torna-se a primeira mulher a receber o Prêmio Juca Pato, como intelectual do ano de 1983.

Viveu 96 anos, teve seis filhos, quinze netos e 19 bisnetos, e membro efetivo de diversas entidades culturais, tendo recebido o título de doutora "Honoris Causa" pela Universidade Federal de Goiás. No dia 10 de abril de 1985, falece em Goiânia. Seu corpo é velado na Igreja do Rosário, ao lado da Casa Velha da Ponte.

Os elementos folclóricos que faziam parte do cotidiano de Ana serviram de inspiração para que aquela frágil mulher se tornasse a dona de uma voz inigualável e sua poesia atingisse um nível de qualidade literária jamais alcançado até aí por nenhum outro poeta do Centro-Oeste brasileiro.


Senhora de poderosas palavras, Ana escrevia com simplicidade e seu desconhecimento acerca das regras da gramática contribuiu para que sua produção artística priorizasse a mensagem ao invés da forma. Preocupada em entender o mundo no qual estava inserida, e ainda compreender o real papel que deveria representar, Ana parte em busca de respostas no seu cotidiano, vivendo cada minuto na complexa atmosfera da Cidade de Goiás, que permitiu a ela a descoberta de como a simplicidade pode ser o melhor caminho para atingir a mais alta riqueza de espírito.



(extraído do livro "Estórias da Casa Velha da Ponte", Global Editora);
artigo de Fabio Rocha e outros artigos selecionados na internet.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

INSCRIÇÃO PARA UMA LAREIRA


INSCRIÇÃO PARA UMA LAREIRA

A vida é um incêndio: nela

dançamos, salamandras mágicas.

Que importa restarem cinzas

se a chama foi bela e alta?

Em meio aos toros que desabam,

cantemos a canção das chamas!

Cantemos a canção da vida,

na própria luz consumida...


Mário Quintana (nova antologia poética)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A MAÇÃ NO ESCURO





A MAÇÃ NO ESCURO - Adélia Prado

Era um cômodo grande, talvez um armazém antigo,
empilhado até o meio de seu comprimento e altura
com sacas de cereais.
Eu estava lá dentro, era escuro,
estando as portas fechadas
eomo uma ilha de sombra em meio do dia aberto.
De uma telha quebrada, ou de exígua janela,
vinha a notícia da luz.
Eu balançava as pernas,
em cima da pilha sentada,
vivendo um cheiro como um rato o vive
no momento em que estaca.
O grão dentro das sacas,
as sacas dentro do cômodo,
o cômodo dentro do dia
dentro de mim sobre as pilhas
dentro da boca fechando-se de fera felicidade.
Meu sexo, de modo doce,
turgindo-se em sapiência,
pleno de si, mas com fome,
em forte poder contendo-se,
iluminando sem chama a minha bacia andrógina.
Eu era muito pequena,
uma menina-crisálida,
Até hoje sei quem me pensa
com pensamento de homem:
a parte que em mim não pensa e vai da cintura aos pés
reage em vagas excêntricas,
vagas de doce quentura
de um vulcão que fosse ameno,
me põe inocente e ofertada,
madura pra olfato e dentes,
em carne de amor, a fruta.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010


Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,

a que não se recusa a esse final convite,

em máquinas de adeus, sem tentação de volta.


Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza:

Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:

já de horizontes libertada, mas sozinha.


Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,

dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho ?

Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.

Pelos mundos do vento em meus cílios guardadas

vão as medidas que separam os abraços.

Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:


“Agora és livre, se ainda recordas


(Solombra, p. 794 )

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

CEM ANOS DE PERDÃO



CEM ANOS DE PERDÃO
clarice Lispector
Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então, é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.
Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. “Aquele branco é meu.” “Não, eu já disse que os brancos são meus.” “Mas esse não é totalmente branco, tem janelas verdes.” Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.
Começou assim. Numa das brincadeiras de “essa casa é minha”, paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.
Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio, e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.
Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo.
Eis-me afinal diante dela. Paro um instante, perigosamente, porque de perto ela ainda é mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.
E, de repente – ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa. O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.
Levei-a para casa, coloquei-a num copo d’água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.
Foi tão bom.
Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.
Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensangüentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora.
Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho virgens. (In Felicidade Clandestina 10ª ed. pág 68)

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O DIREITO DE MUDAR DE OPINIÃO


“O DIREITO DE MUDAR DE OPINIÃO”

MARINA COLASANTI “MULHER DAQUI PRA FRENTE” -1981



Opinião é feito navio: a gente não abandona, afunda com ele se for preciso. Foi o que pensei desde criança, desde quando me convenceram de que assim estava certo. A vida, pensava eu, era para ser levada na base do “repete se você é homem”, e a gente ali, homem paca, repetindo incansável e heróicamente, agarrada naquele ponto de vista, fazendo da manutenção da opinião uma questão de honra, quando honra ainda era fundamental.
Foi isso que me disseram, e foi nisso que acreditei até certa hora. Depois pulei fora. Agora convivo serenamente com a evidência de que as minhas opiniões não são definitivas. E como o poeta americano walt Whitman, tenho repetido freqüentemente: “ você diz que eu me contradigo. Sim, eu me contradigo mesmo”.
“ A melhor surpresa”, segundo o slogan de uma grande cadeia de hotéis americana, “ é não ter surpresa nenhuma.” É encontrar tudo que esperávamos. Gostamos de chegar em casa e deparar com as coisas nos seus devidos lugares. O jarro no centro da mesa, sofá e poltronas em esquadro bem comportado. Qualquer quebra nessa arrumação é suficiente pra nos mergulhar no espanto. O mesmo com as idéias. Gostamos da nossa cabeça bem arrumada. Opiniões já conhecidas, nos seus conhecidos lugares. Pensar parece assim mais fácil, viver parece mais seguro. Basta estabelecer os parâmetros iniciais, e tocar o bonde.
Os trilhos da vida, porém, não são tão paralelos. Crescemos, aprendemos, e de repente aquela bitolinha fica estreita demais, e o caminho traçado, que acreditávamos tão exclusivo, revela-se apenas um, entre tantos. É hora de mudar.
É hora mas hesitamos: é? Seria? Não é? A incerteza nos pega pelo pé, o medo nos abocanha pelo estômago. E os preconceitos cravados na nuca, no pé do ouvido, murmuram que mudar de opinião é sinônimo de inconstância, que o bonito é manter-se firme ns próprias opiniões.
Altissonante, mas falso e perigoso. Pois o mundo não se fez ficando parado, nem é ancoradas a idéias já superadas que encontraremos nosso crescimento.
“ Só os parvos não mudam”, rebateu Rui Barbosa certa vez, ao ser acusado de mudar de idéia. A frase certamente não agradou às multidões, e muito menos a quem o acusava. Ninguém gosta de ser chamado de parvo. Mas, apesar de ser um ato inteligente, qualquer mudança de opinião encontra grandes resistências.
Resistências de fora, em primeiro lugar. Os outros, ou seja, a sociedade como um todo não costuma gostar de pessoas questionadoras. É o mesmo fenômeno da sala. Tudo é mais fácil quando ocupa apenas um espaço já estabelecido. Tudo é mais controlável. Uma pessoa que não questiona aquilo que aprendeu desde pequena, uma pessoa que não pergunta o porquê das coisas, uma pessoa que não procura a própria verdade é certamente uma pessoa obediente, fácil de ser conduzida pelos caminhos que os donos do poder houverem por bem lhe traçar.
Da mesma forma, uma pessoa que, embora tendo questionado algumas verdades iniciais, “ empaca” numa verdade que estabelece como sendo a única verdadeira e imutável é uma pessoa previsível, em relação à qual podem-se armar os esquemas.
Mas a pessoa questionadora, a que está sempre repensando as coisas e procurando novos ângulos de visão, esta não é uma mobília bem comportada, um sofá em esquadro, é um ponto de interrogação no meio da sala, a exigir dos outros idêntica dinâmica.
E esta dinâmica os outros, enquanto maioria, não têm, e não querem ter. Porque esta dinâmica assusta.
Mas antes de vermos por que assusta, quero fazer um desvio e dizer que, se todos sofrem violenta repressão às suas mudanças, nós mulheres sofremos muito mais. Em nó a mudança é logo vista como futilidade, como falta de segurança. “la donna è mobile, qual piuma al vento”, diz a ária de ópera ( “ a mulher é móvel, como pluma levada pelo vento”). Ou seja, vai onde o vento sopra, onde é levada e não onde deseja ir, onde sua inteligência lhe diz que é o lugar. Mudanças de opinião, em nós mulheres, são vistas com maior espanto, porquanto é tido como certo que não temos opinião alguma, e então, como mudar o que não existe? Hoje até o fato de reivindicarmos o direito de ter opinões aparece como uma mudança. E o quanto assusta estarmos vendo por aí nas reações da nossa sociedade ainda tão machista.
Feito o desvio, apreciada a paisagem que parece lateral mas que para nós é talvez a mais importante, vamos voltar ao medo que mudar de opinião desperta em todos nós
Sim, todos nós temos dificuldade em pegar uma idéia que já tínhamos e esquartejá-la, minuciosamente estudar-lhe as víceras, para depois decidir se é o caso de recompô-la ou de transformar o exame em autópsia e enterrar logo o cadáver. Todos nós hesitamos. Por quê?
a - Porque poucas coisas são tão confortáveis quanto uma idéia velha. É feito chinelo que o pé já conhece, gato manso que acariciamos sem olhar. Assim a idéia que já está conosco há muito tempo. Sabemos de cor seus desvãos, seus argumentos. Não precisamos quase raciocinar para defendê-la, basta desfiar o rosário das frases com que a estruturamos ao longo dos anos, ou repetir os conceitos de que ela veio acompanhada quando nos foi vendida. Uma idéia já conhecida e explorada não nos causa ansiedade, não nos ameaça, vem mansamente ao trote quando a convocamos, dócil cavalo de batalha, e se insere sem alarde entre as outras rotinas da nossa vida. Uma idéia velha não nos exige.
b - Abrir mão, seja do que for, sempre é difícil. E mais difícil fica no caso das opiniões, quando, freqüentemente, sobre elas outras coisas foram construídas. Abrir mão de uma opinião raramente significa abrir mão apenas dela, mas sim dela e de outras que lhe são ligadas, e, em cadeia, de um determinado comportamento. Abrir mão de uma opinião é, em última análise, abrir mão de um pedaço de si. Se, por exemplo, consideramos que ir à praia topless é uma indecência, ao mudarmos de opinião não estamos mudando somente em relação à parte de cima do biquini, mas sim à exibição do corpo, ao direito sobre esse corpo, à relação desse direito confrontado com as expectativas do nosso grupo social, e ao próprio conceito de decência. É uma mudança grande, bem maior do que parece à primeira vista, e nada mais natural do que hesitar diante dela.
c – Toda mudança causa conflito. Até a idéia de vender o carro usado e comprar um novo nos transtorna. E isto porque toda mudança implica um avaliação, julgamento. Se vou trocar meu carro, preciso saber se o antigo era bom, e, sendo bom, se era melhor do que as marcas todas que a publicidade tenta me impingir, se houve alterações no mercado, e quais as minhas possibilidades aquisitivas. Enfim, preciso analisar vários dados e confrontá-los. Um processo idêntico ocorre em relação às opiniões. Para trocar uma opinião por outra, preciso confrontar as duas, julgar sua validade decidir qual me parece melhor. Esse julgamento, essa decisão ao salto, assusta.
d – Se hoje penso de um jeito a respeito de determinada coisa e amanhã decido mudar, será necessário reconhecer que meu pensamento estava errado, ou que, pelo menos, tornou-se errado em determinado momento. Será preciso reconhecer meu próprio erro. E quantos gostam disso?
e – Uma opinião importante é um modo de ser e de viver. Nossos amigos, nosso grupo, nossos parentes estão acostumados com nossas opiniões. Mudar uma opinião significa muitas vezes ter que enfrentar o nosso grupo. E sabemos que o grupo tudo fará para nos manter como éramos, do jeito que já nos conheciam, nos aceitavam, do jeito que tornou possível nosso entrosamento. A mudança de um dos elementos do grupo é vivida pelo grupo como ameaça de desintegração, de modificação generalizada, e é conseqüentemente combatida. Sabemos portanto que mudar de opinião nos exigirá trabalho, explicações, discussões. Uma luta, enfim, pequena ou grande, mas luta, uma oposição às pessoas que mais queremos.
f - E numa luta, por menor que seja, temos sempre duas possibilidades: ganhá-la ou perdê-la. Podemos, por causa de uma opinião, perder o afeto ou até a estima de pessoas a nós ligadas. Podemos dialogar, convencer, mas corremos sempre o risco de subitamente perder a aceitação do outro e abrir distâncias insuperáveis. O medo dessa possível perda está presente, ainda que nem sempre conscientizado, ao enfrentarmos o processo de uma mudança de opinião.
g – E outro medo se engancha no nosso pé. O medo do desconhecido. Abro mão da idéia velha, meu confortável chinelo, em troca de uma idéia nova. Não só terei que amaciá-la, e a mim com ela, mas terei que reorganizar minhas idéias todas, rever o resto. E certamente sairei mudada, ainda que pouco apenas, ainda que parcialmente. Que eu mudada serei então? Não sei, não tenho como saber. E o não saber me assusta.
De tanto falar em medos, estou aqui quase espalhando o pânico. Que essa conversa sirva para o entendimento, mas não nos assuste. São vários medos, mas enfeixados em um só, e não tão forte a ponto de impedir que as opiniões mudem constantemente.
Tivemos medo, e quanto! Galileu apareceu afirmando que a Terra não só não era fixa, como girava em torno do Sol. Afinal, Ptolomeu noa havia convendido do contrário, e a teoria dele era mais bonita, nos conferia mais importância, com o sol girando ao nosso redor servilmente. Galileu foi processado, ameaçado de morte. Mas aos poucos acabamos mudando de opinião e acatando sua frase murmurada: “ Eppur si muove!” ( e no entanto se mexe!) Hoje, até o Vaticano revê seu processo.
O Novo Testamento mudou opiniões formadas pelo Velho. E, não fosse a onisciência, até Deus teria mudado sua opinião em relação a Adão e a Eva depois do fato da maçã. Enfim, a nossa história é a história das nossas mudanças de opinião.
“ Quem pretende uma felicidade e uma sabedoria constante deveria acomodar-se a freqüentes mudanças”, dizia Confúcio. O problema é que às vezes, embora pretendendo a felicidade, não queremos nos adaptar. Duvido, por exemplo, que o próprio Confúcio, machista convicto que defenia a mulher como “um homem inferior” e que estabeleceu um violento esquema de dominação da mulher na China, conseguisse aceitar colocações mais feministas, as mesmas que hoje estão criando uma modificação radical de comportamento.
Esquecidas das enormes mudanças de que fazemos parte relutamos às vezes em mudar uma nossa pequena opinião. Mas por que estaríamos condenadas à prisão de idéias gradeadas, se tudo ao redor anda?
Mudar nossa opinião em relação à conduta sexual, por exemplo, é uma mudança individual. Mas é também parte da grande mudança coletiva que a sociedade ocidental vem nas últimas décadas formulando e que já chamamos Revolução Sexual. E o mesmo acontece quando repensamos nossa relação com as minorias, ou quando simplesmente decidimos parar de comer aqueles mesmos enlatados que tanto nos seduziam. Mudamos individualmente, e individualmente corremos os riscos de mudança, mas nosso comportamento e nossa escolha se inserem no conjunto mais amplo.
Precursoras, podemos viver nossa mudança em solidão, precisando de mais energia para derrubar a reação ainda compacta contra nosso gesto. Ou, mais prudentes, chegamos à mudança quando um maior número de evidências se acumula e já encontramos vozes em que nos apoiar. Tempo e momento, cada um faz o seu. Importante é a convicção.
Taí uma palavra sem a qual se invalida tudo o que dissemos: convicção. Esta é alavanca fundamental para qualquer, verdadeira, mudança de opinião. Mudar de opinião por insegurança, para acompanhar os outros, para não ficar por fora, pode fazer de nós figuras patéticas.
Mas opinião não é honra, opinião não é jura, opinião não é sobrenome, carga genética, nada que não se possa mudar. Se hoje você diz uma coisa, e amanhã percebe que não concorda mais com o que disse, pode não se tratar de inconstância, mas de lucidez. Isso, é claro, se depois de amanhã você não pensar de outra maneira, e no dia seguinte tornar a mudar, como uma ventoinha.
O normal, o saudável é mudar. Como exemplo nos sirva o livro de Fernando Gabeira, Que é isso, companheiro?, cujo sucesso se deve em grande parte ao fato dele rever, pública e honestamente, suas opiniões vitais, seu comportamento, sua atuação política. Ao fazê-lo, ele se torna mais humano e próximo do que a imagem puramente heróica que dele se tinha.
Assim, também no amor nos tornamos mais acessíveis na medida em que somos capazes de rever nossas posições, e de mudá-las quando necessário. Temer que o outro viva nossas mudanças como fraquezas e delas se aproveite contra nós ou contra a relação, subjugando-nos, é não ter confiança no outro, nem em nós mesmas. E, nesse caso, tampouco adiantaria cravarmos os pés irredutivelmente numa única posição.
Mas, para mudar, é conveniente fazê-lo com justeza. E a justeza, onde está?
Não sei, nem ninguém sabe, pois é preciso desencavá-la a cada vez, entre pedras, cactos e tantos arremedos de justeza. Sei, talvez, como me armar para procurá-la melhor. É meu armamento individual, mas talvez sirva a outros.
Preciso, eu sei, ter confiança em mim, na minha capacidade de ver, no meu discernimento. Sempre haverá quem queira me demover, e com belos argumentos, cantos de sereia. Ao contrário de Ulisses que botou cera nos ouvidos para não ouví-los, eu deverei abrir bem os meus e deixar que entrem os cantos todos, para sopesá-los. A fé na minha balança, a mim cabe.
Sei que até o fato de eu ser mulher será em algum momento usado, direta ou indiretamente,para me demover.
Tentarão me convencer de que sou fraca, mais suscetível a engodos, inocente.Mas exatamente o fato de ser mulher me servirá de fortalecimento. Pois sei que por ser mulher que tenho que ser mais aguerrida, e por ser uma mulher que questiona sou mais lúcida do que tantos.
Preciso, eu sei, de dados. É com o conhecimento que consolido e comprovo minha sensibilidade. É com o conhecimento que construo argumentos. É com o conhecimento que armo o quadro e escolho as minhas tintas.
E tendo os dados, preciso do hábito da análise para saber interrogá-los.Se me acostumo a aceitar tudo o que me dizem, sem questionar, sem elaborar, será difícil, impossível quase, encontrar caminhos novos, que sejam os meus. A análise se afia na prática, no exercício diário, na observação de análises alheias. A análise é pôr em dúvida, submeter a exame, comparar. A análise é o jogo que realizamos entre a tese e antítese, para chegarmos à sintese. A análise é um dos mais comoventes exercícios da mente.
Tendo fé em mim, tendo os dados e a capacidade de análise, que não me falte ainda assim a humildade de pedir explicações. Não entender, ou entender mal, é direito do qual não abro mão. E é contingência da qual não devo me envergonhar. Quando alguma verdade ou suposta verdade me for servida em belo prato, nunca começar a comê-la sem antes verificar os ingredientes de que se compõe.
Assim talvez seja mais possível o acerto nessa galeria de espelhos que o mundo se esmera em fabricar para nós. Assim, pelo menos, mesmo errando, poderei chegar a uma conclusão que seja a minha, e que eu tenha não só forças como prazer em defender.