terça-feira, 26 de outubro de 2010

AFINAL...


AFINAL... Àlvares de Campos ( Fernando Pessoa)
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordianariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
quanto mais personalidade eu tiver,
quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
estiver, sentir, viver, for,
mais possuirei a existência total do universo,
mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
e fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
cada alma é um corredor-Universo para Deus,
cada alma é um rio correndo por margens de Externo
para Deus e em deus como um sussurro soturno.
Sursum Corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito ,
Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum Corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
as coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam
com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.
Sursum Corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,
escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.
Sursum Corda! Ó Terra, jardim suspenso, nerço
que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!


Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis
Num rito anterior a todas as significações,
num grande culto em tumulto pelas montanhas e vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
À tua própria vontade transtornadora e eterna!



Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!
Sursum Corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!
Tudo um mim como um satélite da tua dinâmica íntima
Voltei serpenteando, ficando como um anel
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,
e, torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre.



Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,
A vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, não quebrem meu ser, não partam meu corpo,
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.
Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo,
tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
no vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo
mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.


Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima.
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
a minha inteligência limitadora e gelada.
Sou uma grande máquina movida por grandes correias
de que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
o resto vai além dos astros, passa para além dos sóis,
e nunca parece chegar ao tambor donde parte...
Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
cruzando-se em todas as direções com outros volantes,
que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço
Mas não sei onde espacial de uma ou outra maneira-Deus.
Dentro de mim estão presos e atados ao chão
todos os movimentos que compõem o universo.
A fúria minuciosa e dos atomos,
a fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
a espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,
A chuva com pedras atiradas de catapultas
de enormes exércitos de anões escondidos no céu.



Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilibrio
de estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

ENCARNAÇÃO INVOLUNTÁRIA


Encarnação Involuntária Clarice Lispector

Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdôo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso eu não queira o retorno a mim mesmo.

Um dia, no avião... ah, meu Deus – implorei - isso não, não quero ser missionária!

Mas era inútil. Eu sabia que, por causa de três horas de sua presença, eu por vários dias seria missionária. A magreza e a delicadeza extremamente polida de missionária já me haviam tomado. É com curiosidade, algum deslumbramento e cansaço prévio que sucumbo à vida que vou experimentar por uns dias viver. E com alguma apreesão, do ponto-de-vista prático: ando agora muito ocupada demais com os meus deveres e prezeres para poder arcar com o peso dessa vida que não conheço – mas cuja tensão evangelical já começo a sentir. No avião mesmo percebo que já comecei a andar com esse passo de santa leiga: então compreendo como a missionária é paciente, como se apaga com esse passo que mal quer tocar no chão, como se pisar mais forte viesse prejudicar os outros. Agora sou pálida, sem nenhuma pintura nos lábios, tenho o rosto fino e uso aquela espécie de chapéu de missionária.

Quando eu saltar em terra provavelmente já terei esse ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma-missão. E no meu rosto estará impressa a doçura da esperança moral. Porque sobretudo me tornei toda sadiamente amoral. Estava, não, estou! Grito-me eu em revolta contra os preconceitos da missionária. Inútil: toda a minha força está sendo usada para eu conseguir ser frágil. Finjo ler uma revista, enquanto ela lê a Bíblia.

Vamos ter uma descida curta em terra. O aeromoço distribui chicletes. E ela cora mal o rapaz se aproxima.

Em terra sou uma missionária ao vento do aeroporto, seguro minhas imaginárias saias longas e cinzentas contra o despudor do vento. Entendo, entendo. Entendendo-a, ah, como a entendo e ao seu pudor de existir quando está fora das horas em que cumpre sua missão. Acuso, como a missionariazinha, as saias curtas das mulheres, tentação para os homens. E, quando não entendo, é com o mesmo fanatismo depurado dessa mulher pálida que facilmente cora à aproximação do rapaz que nos avisa que devemos prosseguir viagem.

Já sei que só daí a dias conseguirei recomeçar enfim integralmente a minha própria vida. Que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, se não no momento de nascer, e o resto tenha sido encarnações. Mas não: eu sou uma pessoa. E quando o fantasma de mim mesma me toma - então é um tal encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra. Depois enxugamos as lágrimas felizes, meu fantasma se incorpora plenamente em mim, e saímos com alguma altivez por esse mundo afora.

Uma vez, também em viagem, encontrei uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando os olhos e estes ao mesmo tempo olhavam fixamente um homem que já estava sendo hipnotizado. Passei imediatamente, para melhor compreender, a fumar de olhos entrefechados para o único homem ao alcance de minha visão intencionada. Mas o homem gordo que eu olhara para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais. Falhou tudo.

domingo, 24 de outubro de 2010

VOZ QUE SE CALA


VOZ QUE SE CALA florbela Espanca

Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera que entende a voz do muro,
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e é pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!...

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

DESPEDIDAS

Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.

Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!

Nada mais é gratuito, tudo é ritual
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.

Affonso Romano de S'Antana