domingo, 27 de dezembro de 2009

A VIAGEM DA PAIXÃO



A viagem da paixão - Bruna Lombard



Tenho os caprichos inerentes à natureza da mulher
abro a caixa de pandora que eu quiser
e lanço mão de todo mal e todo bem
avanço a passos largos
alcanço o ponto extremo e vou além
onde se estende a palpitação das células
e se prolongam feixes de neurônios
onde se nasce, morre e se enlouquece
intima de deuses e demônios.
Onde habitam as feras, os espítiros das florestas
onde se determina a primavera
e se marcam as nossas testas.
Onde se aprende a sabedoria do fogo
e todas as forças de atração
e se descobre o ponto que orienta
esse mapa de navegação.
Estrela solitária, asteróide desgarrado
luz que aponta o caminho
da viagem da paixão.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O AMOR NO ÉTER


O Amor no Éter Adélia Prado

Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da
tarde.
Aves pernaltas, os bicos
mergulhados na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniço na margem.
Habito nele, quando os desejos do corpo,
a metafísica, exclamam:
como és bonito!
Quero escrever-te até encontrar
onde segregas tanto sentimento.
Pensas em mim, teu meio-riso secreto
atravessa mar e montanha,
me sobressalta em arrepios,
o amor sobre o natural.
O corpo é leve como a alma,
os minerais voam como borboletas.
Tudo deste lugar
entre meio-dia e duas horas da tarde.

sábado, 19 de dezembro de 2009

ELE ME BEBEU




ELE ME BEBEU Clarice Lispector
É . Aconteceu mesmo.
Serjoca era maquilador de mulheres. Mas não queria nada com mulheres. Queria homens.
E maquilava Aurélia Nascimento. Aurélia era bonita e, maquilada, ficava deslumbrante. Era loura, usava peruca e cílios postiços. Ficaram amigos. Saíam juntos, essa coisa de ir jantar em boates.
Todas às vezes que Aurélia queria ficar linda ligava para Serjoca. Serjoca também era bonito. Era magro e alto.
E assim corriam as coisas. Um telefonema e marcavam encontro. Ela se vestia bem, era caprichada. Usava lentes de contato. E seios postiços. Mas os seus mesmos eram lindos, pontudos. Só usava os postiços porque tinha pouco busto.
Sua boca era um botão de vermelha rosa. E os dentes grandes, brancos.
Um dia, às seis horas da tarde, na hora do pior trânsito, Aurélia e Serjoca estavam em pé junto do Copacabana Palace e esperavam inutilmente um táxi. Serjoca, de cansaço, enconstara-se numa árvore. Aurélia impaciente. Sugeriu que dessem ao porteiro dez cruzeiros para que ele lhes arranjasse uma condução. Serjoca negou: era duro para soltar dinheiro.
Eram quase sete horas. Escurecia. O que fazer?
Perto deles estava Affonso Carvalho. Industrial de metalurgia. Esperava o seu Mercedes com chofer. Fazia calor, o carro era refrigerado, tinha telefone e geladeira. Affonso fizera quarenta anos no dia anterior.
Viu a impaciência de Aurélia que batia com os pés na calçada. Interessante essa mulher, pensou Affonso. E quer carro. Dirigiu-se a ela:
- A senhorita está achando dificuldade de condução?
- Estou aqui desde as seis horas e nada de um táxi passar e nos pegar! Já não agüento mais.
- Meu chofer vem daqui a pouco, disse Affonso. Posso levá-los a alguma parte?
- Eu lhe agradeceria muito, inclusive porque estou com dor no pé.
Mas não disse que tinha calos. Escondeu o defeito. Estava maquiladíssima e olhou com desejo o homem. Serjoca muito calado.
Afinal veio o chofer, desceu, abriu a porta do carro. Entraram os três. Ela na frente, ao lado do chofer, os dois atrás. Tirou discretamente o sapato e suspirou de alívio.
- Para onde vocês querem ir?
- Não temos propriamente destino, disse Aurélia cada vez mais acesa pela cara máscula de Affonso.
- Ele disse:
- E se fôssemos ao Number One tomar um drinque?
- Eu adoraria, disse Aurélia. Você não gostaria, Serjoca?
- É claro, preciso de uma bebida forte.
Então foram para a boate, a essa hora quase vazia. E conversaram. Affonso falou de metalurgia. Os outros dois não entendiam nada. Mas Affonso estava entusiasmado e, embaixo da mesa, encostou o pé no pé de Aurélia. Justo o pé que tinha calo. Ela correspondeu, excitada. Aí Affonso disse:
- E se fôssemos jantar na minha casa? Tenho hoje escargots e frango com trufas. Que tal?
- Estou esfaimada.
E Serjoca mudo. Estava também aceso por Affonso.
O apartamento era atapetado de branco e lá havia escultura de Bruno Giorgi. Sentaram-se, tomaram outro drinque e foram para a sala de jantar. Mesa de jacarandá. Garson servindo à esquerda. Serjoca não sabia comer escargots e atrapalhou-se todo com os talheres especiais. Não gostou. Mas Aurélia gostou muito, se bem que tivesse medo de ter hálito de alho. Mas beberam champanha francesa durante o jantar todo. Ninguém quis sobremesa, queriam apenas café.
E foram para a sala. Aí Serjoca se animou. E começou a falar que não acabava mais. Lançava olhos lânguidos para o industrial. Este ficou espantado com a eloqüência do rapaz bonito. No dia seguinte telefonaria para Aurélia para lhe dizer: O Serjoca é um amor de pessoa.
E marcaram novo encontro . Desta vez num restaurante, o Albamar. Comeram ostras para começar. De novo Serjoca teve dificuldade de comer as ostras. Sou um errado, pensou.
Mas antes de se encontrarem, Aurélia telefonou para Serjoca: precisava de maquilagem urgente. Ele foi à sua casa.
Então, enquanto era maquilada, pensou: Serjoca está me tirando o rosto.
A impressão era a de que ele apagava os seus traços: vazia, uma cara só de carne. Carne morena.
Sentiu mal-estar. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar no espelho. Era isso mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha anulado o seu rosto. Mesmo os ossos – e tinha uma ossatura espetacular – mesmo os ossos tinham desaparecido. Ele está me bebendo, pensou, ele vai me destruir. E é por causa do Affonso.
Voltou sem graça. No restaurante quase não falou. Affonso falava mais com Serjoca, mal olhava para Aurélia: estava interessado no rapaz.
Enfim, enfim acabou o almoço.
Serjoca marcou encontro com Affonso para de noite. Aurélia disse que não podia ir, estava cansada. Era mentira: não ia porque não tinha cara para mostrar. Chegou em casa, tomou um longo banho de imersão com espuma, ficou pensando: daqui a pouco ele me tira o corpo também. O que fazer para recuperar o que fora seu? A sua individualidade?
Saiu da banheira pensativa. Enxugou-se com uma toalha enorme, vermelha. Sempre pensativa.
Pesou-se na balança: estava com bom peso. Daí a pouco ele me tira também o peso, pensou.
Foi ao espelho.Olhou-se profundamente. Mas ela não era mais nada.
Então – então de súbito deu uma bruta bofetada no lado esquerdo do rosto. Para se acordar. Ficou parada olhando-se. E, como se não bastasse, deu mais duas bofetadas na cara. Para encontrar-se.
E realmente aconteceu.
No espelho viu enfim um rosto humano, triste, delicado. Ela era Aurélia Nascimento. Acabara de nascer. Nas-ci-men-to.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

OS LUGARES COMUNS


OS LUGARES COMUNS Adélia Prado
Quando o homem que ia casar comigo
chegou a primeira vez na minha casa,
eu estava saindo do banheiro, devastada
de angelismo e carência. Mesmo assim,
ele me olhou com olhos admirados
e segurou minha mão mais que
um tempo normal a pessoas
acabando de se conhecer.
Nunca mencionou o fato.
até hoje me ama com amor
de vagarezas, súbitos chegares.
Quando eu sei que ele vem,
eu fecho a porta para a grata surpresa.
Vou abri-la como o fazem as noivas
e as amantes. Seu nome é:
Salvador do meu corpo.

domingo, 13 de dezembro de 2009

A MULHER MADURA


A Mulher Madura - Affonso Romano de Sant'Anna


O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.
De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.
Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente.
A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. E como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.
A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência.
Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente.

Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.
A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.
A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que sai dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.
A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.
O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície.
Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade.


Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.
Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.
Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.
Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.
A mulher madura está pronta para algo definitivo. Merece, por exemplo,

sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.
A mulher madura é um ser luminoso e repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes. Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

PENSAR É TRANSGREDIR


Pensar é Transgredir Lya Luft

Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos – para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos.
Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como um taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.
Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.
Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: “ Parar pra pensar, nem pensar!”
O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.
Sem ter programado, a gente pára pra pensar.
Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.
Pensar pede audácia, pos refletir é transgredir a ordem do superficial que nos preciona tanto.
Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida.
Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.
Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo.
Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode menos do que o dos possíveis ganhos.
Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.
Parece fácil: “escrever a respeito das coisas é fácil”, já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.
Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. ter esperança; qualquer esperança.
Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.
Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
É que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

TODAS AS VIDAS



Todas as Vidas - Cora Coralina


Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeirado Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de São-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Meio casmurra.

Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras.







segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

AS TREZE MATRIARCAS - LENDA


A Lenda das Treze Matriarcas
Ao longo dos tempos, entre os Kiowas, Cherokee, Iroquois, Seneca e em várias outras tribos nativas norte-americanas, as anciãs contavam e ensinavam, nos “Conselhos de Mulheres” e nas “Tendas Lunares”, as tradições herdadas de suas antepassadas. Dentre várias dessas lendas e histórias, sobressai a lendas das “Treze Mães das Tribos Originais”, representando os princípios da energia feminina manifestados nos aspectos da Mãe Terra e da Vovó Lua.
Neste momento de profundas transformações humanas e planetárias, é importante que todas as mulheres conheçam este antigo legado para poderem se curar antes de tentarem curar e nutrir os outros. Dessa forma, as feridas da alma feminina não mais se manifestarão em atitudes hostis, separativistas, manipuladoras ou competitivas. Alcançando uma postura de equilíbrio, as mulheres poderão expressar as verdades milenares que representam, em vez de imitarem os modelos masculinos de agressão, competição, conquista ou domínio, mostrando assim, ao mundo um exemplo de força equilibrada, se empenhando na construção de uma sociedade de parceria.
Como regente das treze lunações, as Trezes Matriarcas protegem a Mãe Terra e todos os seres vivos, seus atributos individuais sendo as dádivas trazidas por elas à Terra. O símbolo da Mãe Terra é a Tartaruga e seu casco, formando os treze segmentos, simboliza o calendário lunar.
Conta a lenda que, no início da vida no nosso planeta, havia abundância de alimentos e igualdade entre os sexos e as raças. Mas, aos poucos, a ganância pelo ouro levou à competição e à agressão; a violência resultante desviou a Terra de sua órbita, levando-a a cataclismos e mudanças climáticas. Em consequência, para que houvesse a purificação necessária do planeta, esse primeiro mundo foi destruído pelo fogo.
Assim, com o intuito de ajudar em um novo início e restabelecer o equilíbrio perdido, a Mãe Cósmica, manifestada na Mãe Terra e na Vovó Lua, deu a humanidade um legado de amor, perdão e compaixão, resguardado no coração das mulheres. Para isso, treze partes do Todo foram manifestados no mundo material como as Trezes Matriarcas, representando as treze lunações de um ciclo solar e atributos de força, beleza, poder e mistério do Sagrado Feminino. Cada um por si só e todas em conjunto, começaram a agir para desenvolver às mulheres a força do amor e o bálsamo do perdão e da compaixão que iriam se manifestar em um novo mundo de paz e iluminação, quando os filhos da Terra teriam aprendido todas as lições e alcançado a sabedoria.
Cada Matriarca detinha no seu coração o conhecimento e a visão e no seu ventre a capacidade de gerar sonhos. Na Terra, elas formaram um conselho chamado “A Casa da Tartaruga” e, quando voltaram para o interior da Terra, deixaram em seu lugar treze crânios de cristal, contendo toda a sabedoria por elas alcançada.
Por meio dos laços de sangue dos ciclos lunares, as Matriarcas criaram uma Irmandade que une todas as mulheres e visa a cura da Terra, começando com a cura das pessoas. Cada uma das Matriarcas detém uma parte da verdade representada, simbolicamente, em cada uma das treze lunações. Conhecendo essas verdades milenares e a sabedoria dos ancestrais, as mulheres atuais podem recuperar sua força interior, desenvolver seus dons, realizar seus sonhos, compartilhar sua sabedoria e trabalhar em conjunto para curar e beneficiar a humanidade e a Mãe Terra.
Somente curando a si mesmas é que as mulheres poderão curar os outros e educar melhor as futuras gerações, corrigindo, assim, os padrões familiares corrompidos. Apenas honrando seus corpos, suas mentes e suas necessidades emocionais, as mulheres terão condições de realizar os sonhos.
Falando suas verdades e agindo com amor, as mulheres atuais poderão contribuir e recriar a paz e o respeito entre todos os seres, restabelecendo, assim, a harmonia e a igualdade originais, bem como o equilíbrio da Terra.
Mirella Faur (Líder espiritual do movimento conhecido como o Ressurgimento do Sagrado Feminino, o retorno da Deusa).
Extraído do livro “O Anuário da Grande Mãe” de Mirella Faur, lançado pela Editora Gaia. In "Clã Lobos do Cerrado"

CASA SECRETA


Casa Secreta

Carolina Salcides

Para realmente conhecer uma mulher conheça seus sonhos

Pergunte dos seus medos e dos seus desejos.

Decifre seus olhares e preste atenção nos detalhes...

Porque a mulher quer ser descoberta e ela lhe mostrará o caminho.

Toda mulher é uma casa secreta cheia de portas e janelas

Esconde passados e em cada quarto esconde um mundo novo.

Cada poro tem seu aroma e em cada curva a cor é diferente.

Para conhecer uma mulher precisa saber onde a carne é mais branca

Se quando ela caminha os cabelos balança,saber como pisa, como ri e como chora.

Saber em que horas acorda, de que jeito dorme.

Uma mulher é feita de mistérios, sem isso não seria mulher.

Esconde os defeitos, esconde as fraquezas, esconde como dança.

Depois ela surpreende, ela dança, ela encanta.

Ela mostra sua força, seu sexo, seu amor.

Ela se abre para o homem que a descobre

E segue com ele por onde ele for.

ELEGIA A UMA PEQUENA BORBOLETA


Elegia a uma pequena borboleta

Cecília Meireles


Como chegavas do casulo,
inacabada seda viva
tuas antenas - fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,

como caíste sobre o mundo
inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,

minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos tua sepultura.
Já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.

Ó bordado do véu do dia,
transparente anêmona aérea!
Não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!

Choro a tua forma violada,
miraculosa, alva, divina,
criatura de pólen, de aragem,
diáfana pétala da vida!
Choro ter pesado em teu corpo
que no estame não pesaria.

Choro esta humana insuficiência:
a confusão dos nossos olhos,
o selvagem peso do gesto,
cegueira, ignorância, remotos
instintos súbitos, violências
que o sonho e a graça prostam mortos.

Pudesse a etéreo paraísos
ascender teu leve fantasma,
e meu coração penitente
ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!
E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
os espelhos que refletissem
vôo e silêncio, os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!

domingo, 6 de dezembro de 2009

CECÍLIA MEIRELES - BIOGRAFIA

Cecília Meireles


"...Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda..."


Filha de Carlos Alberto de Carvalho Meireles, funcionário do Banco do Brasil S.A., e de D. Matilde Benevides Meireles, professora municipal, Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu em 7 de novembro de 1901, na Tijuca, Rio de Janeiro. Foi a única sobrevivente dos quatros filhos do casal. O pai faleceu três meses antes do seu nascimento, e sua mãe quando ainda não tinha três anos. Criou-a, a partir de então, sua avó D. Jacinta Garcia Benevides. Escreveria mais tarde:


"Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno.


(...) Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou o sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade.(...)

Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano."


Conclui seus primeiros estudos — curso primário — em 1910, na Escola Estácio de Sá, ocasião em que recebe de Olavo Bilac, Inspetor Escolar do Rio de Janeiro, medalha de ouro por ter feito todo o curso com "distinção e louvor". Diplomando-se no Curso Normal do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, em 1917, passa a exercer o magistério primário em escolas oficiais do antigo Distrito Federal.

Dois anos depois, em 1919, publica seu primeiro livro de poesias, "Espectro". Seguiram-se "Nunca mais... e Poema dos Poemas", em 1923, e "Baladas para El-Rei, em 1925.

Casa-se, em 1922, com o pintor português Fernando Correia Dias, com quem tem três filhas: Maria Elvira, Maria Mathilde e Maria Fernanda, esta última artista teatral consagrada. Suas filhas lhe dão cinco netos.

Publica, em Lisboa - Portugal, o ensaio "O Espírito Vitorioso", uma apologia do Simbolismo.

Correia Dias suicida-se em 1935. Cecília casa-se, em 1940, com o professor e engenheiro agrônomo Heitor Vinícius da Silveira Grilo.

De 1930 a 1931, mantém no Diário de Notícias uma página diária sobre problemas de educação.

Em 1934, organiza a primeira biblioteca infantil do Rio de Janeiro, ao dirigir o Centro Infantil, que funcionou durante quatro anos no antigo Pavilhão Mourisco, no bairro de Botafogo.

Profere, em Lisboa e Coimbra - Portugal, conferências sobre Literatura Brasileira.

De 1935 a 1938, leciona Literatura Luso-Brasileira e de Técnica e Crítica Literária, na Universidade do Distrito Federal (hoje UFRJ).

Publica, em Lisboa - Portugal, o ensaio "Batuque, Samba e Macumba", com ilustrações de sua autoria.

Colabora ainda ativamente, de 1936 a 1938, no jornal A Manhã e na revista Observador Econômico.

A concessão do Prêmio de Poesia Olavo Bilac, pela Academia Brasileira de Letras, ao seu livro Viagem, em 1939, resultou de animados debates, que tornaram manifesta a alta qualidade de sua poesia.

Publica, em 1939/1940, em Lisboa - Portugal, em capítulos, "Olhinhos de Gato" na revista "Ocidente".

Em 1940, leciona Literatura e Cultura Brasileira na Universidade do Texas (USA).Em 1942, torna-se sócia honorária do Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro (RJ).

Aposenta-se em 1951 como diretora de escola, porém continua a trabalhar, como produtora e redatora de programas culturais, na Rádio Ministério da Educação, no Rio de Janeiro (RJ).

Em 1952, torna-se Oficial da Ordem de Mérito do Chile, honraria concedida pelo país vizinho. Realiza numerosas viagens aos Estados Unidos, à Europa, à Ásia e à África, fazendo conferências, em diferentes países, sobre Literatura, Educação e Folclore, em cujos estudos se especializou.

Torna-se sócia honorária do Instituto Vasco da Gama, em Goa, Índia, em 1953.

Em Délhi, Índia, no ano de 1953, é agraciada com o título de Doutora Honoris Causa da Universidade de Délhi.

Recebe o Prêmio de Tradução/Teatro, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1962.

No ano seguinte, ganha o Prêmio Jabuti de Tradução de Obra Literária, pelo livro "Poemas de Israel", concedido pela Câmara Brasileira do Livro.

Seu nome é dado à Escola Municipal de Primeiro Grau, no bairro de Cangaíba, São Paulo (SP), em 1963.

Falece no Rio de Janeiro a 9 de novembro de 1964, sendo-lhe prestadas grandes homenagens públicas. Seu corpo é velado no Ministério da Educação e Cultura.

Recebe, ainda em 1964, o Prêmio Jabuti de Poesia, pelo livro "Solombra", concedido pela Câmara Brasileira do Livro.

Ainda em 1964, é inaugurada a Biblioteca Cecília Meireles em Valparaiso, Chile.

Em 1965, é agraciada com o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra, concedido pela Academia Brasileira de Letras. O Governo do então Estado da Guanabara denomina Sala Cecília Meireles o grande salão de concertos e conferências do Largo da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Em São Paulo (SP), torna-se nome de rua no Jardim Japão.

Em 1974, seu nome é dado a uma Escola Municipal de Educação Infantil, no Jardim Nove de Julho, bairro de São Mateus, em São Paulo (SP).Uma cédula de cem cruzados novos, com a efígie de Cecília Meireles, é lançada pelo Banco Central do Brasil, no Rio de Janeiro (RJ), em 1989.

Em 1991, o nome da escritora é dado à Biblioteca Infanto-Juvenil no bairro Alto da Lapa, em São Paulo (SP).

O governo federal, por decreto, instituiu o ano de 2001 como "O Ano da Literatura Brasileira", em comemoração ao sesquicentenário de nascimento do escritor Silvio Romero e ao centenário de nascimento de Cecília Meireles, Murilo Mendes e José Lins do Rego.

Há uma rua com o seu nome em São Domingos de Benfica, uma freguesia da cidade de Lisboa. Na cidade de Ponta Delgada, capital do arquipélago dos Açores, há uma avenida com o nome da escritora, que era neta de açorianos.

Traduziu peças teatrais de Federico Garcia Lorca, Rabindranath Tagore, Rainer Rilke e Virginia Wolf.

Sua poesia, traduzida para o espanhol, francês, italiano, inglês, alemão, húngaro, hindu e urdu, e musicada por Alceu Bocchino, Luis Cosme, Letícia Figueiredo, Ênio Freitas, Camargo Guarnieri, Francisco Mingnone, Lamartine Babo, Bacharat, Norman Frazer, Ernest Widma e Fagner, foi assim julgada pelo crítico Paulo Rónai:

"Considero o lirismo de Cecília Meireles o mais elevado da moderna poesia de língua portuguesa. Nenhum outro poeta iguala o seu desprendimento, a sua fluidez, o seu poder transfigurador, a sua simplicidade e seu preciosismo, porque Cecília, só ela, se acerca da nossa poesia primitiva e do nosso lirismo espontâneo...A poesia de Cecília Meireles é uma das mais puras, belas e válidas manifestações da literatura contemporânea.

Retirado do site: http://www.releituras.com/cmeireles_bio.asp
Ver, no mesmo, extensa Bibliografia da Autora.

ACHAMOS QUE SABEMOS


Achamos que Sabemos - Martha Medeiros


Outro dia assisti a um filme no DVD do qual nunca ouvido falar - talvez porque nem chegou a passar nos cinemas. Chama-se "Vida de Casado", um drama enxuto, com apenas 90 minutos de duração e jeito de clássico. Gostei bastante. Um homem casado há muitos anos se apaixona por uma bela garota e com ela quer viver, ms não sabe como terminar seu casamento sem que isso humihe sua venerável esposa, então decide que é melhor matá-la para que ela não sofra: não é uma solução amorosa? Não tem o brilhantismo de um Woody Allen, mas o roteiro tem certo parentesco com "crimes e pecados". Se fosse possível resumir o filme numa única frase, seria: "Ninguém sabe o que está se passando pela cabeça da pessoa que está dormindo ao nosso lado".

Será que sabemos, de verdade, o que acontece à nossa volta? Achamos que sabemos.

Achamos que sabemos quais são as ambições de nosso filhos, o que eles planejam para suas vidas, esquecendo que a complexidade humana também é atributo dos que nasceram do nosso ventre, e que por mais íntimos e abertos que eles sejam conosco, jamais teremos noção exata de seus desejos mais secretos.

Achamos que sabemos o que o amor de nossa vida sente por nós, baseados em suas declarações afetuosas, seus olhares ternos, suas gentilezas intermináveis e sua permanência, mas isso diz tudo mesmo? Nem sempre temos conhecimento das carências mais profundas daquele que vive sob nosso teto, e não porque ele esteja sonegando alguns dos seus sentimentos, mas porque nem ele consegue explicar para si mesmo o que lhe dói e o que ainda lhe falta.

Achamos que sabemos quais são as melhores escolhas para nossa vida e é verdade que alguma intuição temos disso, mas certeza, nenhuma. Achamos que sabemos como será envelhecer, como será ter consciência de que se está vivendo os últimos anos que nos restam, como será perder a rigidez e a saúde do corpo, achamos que sabemos como se deve enfrentar tudo isso, mas que susto levaremos quando chegar a hora.

Achamos que sabemos o que pensam as pessoas que conversam conosco e que até nos fazem confidências, aceitamos cada palavra dita e nos sentimos honrados pelas informações recebidas, sem levar em conta que muito do que está sendo dito pode ser da boca pra fora, uma encenação que pretende justamente mascarar a verdade, aquela verdade que só sobrevive no silêncio de cada um.

Achamos que sabemos decodificar sinais, perceber humores, adivinhar pensamentos, e às vezes acertamos, mas erramos tanto. Achamos que sabemos o que as pessoas pensam de nós. Achamos que sabemos amar, achamos que sabemos conviver e achamos que sabemos quem de fato somos, até que somos pegos de surpresa por nossas próprias reações.

Achar é o mais longe que podemos ir nesse universo repleto de segredos, sussurros, incompreensões, traumas, sombras, urgências, saudades, desordens emocionais, sentimentos velados, todas essas abstrações que não podemos tocar, pegar nem compreender com exatidão. Mas nos conforta achar que sabemos.

sábado, 5 de dezembro de 2009

DÁ-ME A TUA MÃO


Dá-me a tua mão
Clarice Lispector


Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.


De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.


Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.


in: A Paixão segundo GH, 8. ed, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979, p. 94

LAÇOS E PUNHAIS


LAÇOS E PUNHAIS Lya Luft

Certa vez errei uma tecla do computador, e em lugar de “perdas” saiu “ peras”.
Eu ia corrigir mas li de novo, achei muito mais bonito e deixei assim. Ninguém reclamou, nem os revisores.
Quem sabe um dos que estudam minha obra, preparando com a maior gravidade sua dissertação ou tese, pare, pense, morda a ponta da caneta ou fique olhando o computador, perplexo. Para depois discorrer filosoficamente sobre aquelas frutas perdidas num texto que nada tinha a ver com elas.
Dessa maneira acontecem mal entendidos: amizades se perturbam, amores se rompem, pessoas, se desencontram e magoam.
- Mas você tinha dito peras!
- Não, eu falei perdas!
- Peras...
- Perdas...
Perdeu-se nesse jogo inconsistente um pedaço de vida, um brilho de entendimento se apagou.
- Eu ia dizer que você me faz “ muita falta”, mas você entendeu você está em falta ... comigo,
com a vida, consigo mesmo.
E passamos meia hora evitando nos olhar de frente, nesses momentos o universo esteve enm desconserto, e nós desconcertados.
Quando eu era menina, certo dia num almoço fiquei observando a família à mesa, e aquelas pessoas tão conhecidas me pareceram umas enormes salsichas com tufos de pêlos no alto, bolinhas se mexendo ( chamadas olhos – ansiosos, tranqüilos, amorosos ou hostis) e aquele furo no centro que se abria e fechava emitindo sons. A boca do beijo, do silêncio ou do insulto.
As outras salsichas também olhavam com seus botõezinhos de vidro brilhante, viravam-se para os lados, agitavam mãos ou abriam e fechavam seus furinhos-boca respondendo.
Palavras escoaçavam sobre a mesa como bilhetes, sinais de fumaça ou borboletas perdidas. Um falava, outro compreendia e devolvia sinais sonoros. Mas de repente alguém não ouviu direito: os olhinhos ficaram duros, os sons da boca estridentes, ou baixos mas furiosos.
Agitação na sala de jantar. Briga em família.
Então nem sempre que alguém dizia “flor” o outro pensava “flor”? e podia entender “ pedra”? Em lugar de enviar sobre a mesa palavras-borboleta, jogavam palavras- pedra?
Nada era simples. O mundo se desarrumava um pouco por causa desses mal-entendidos.
Até ali, para mim palavras eram objetos mágicos: agora via que podiam ser traiçoeiros. Belos de olhar, mas duros, com arestas cortantes; caramelos de vários sabores que eu deixava rolar na boca com delícia, porém a gente podia se engasgar, até morrer.
Não era só prazer a linguagem: peras, perdas, fazer falta, estar em falta ou sentir falta. Desacordo, desconserto. Ambivalentes como nós, palavras preparam armadilhas ou abrem portas de sedução. Embalam ou derrubam, eredam em doces laços, ou nos matam dolorosamente – como punhais.