LAÇOS E PUNHAIS Lya Luft
Certa vez errei uma tecla do computador, e em lugar de “perdas” saiu “ peras”.
Eu ia corrigir mas li de novo, achei muito mais bonito e deixei assim. Ninguém reclamou, nem os revisores.
Quem sabe um dos que estudam minha obra, preparando com a maior gravidade sua dissertação ou tese, pare, pense, morda a ponta da caneta ou fique olhando o computador, perplexo. Para depois discorrer filosoficamente sobre aquelas frutas perdidas num texto que nada tinha a ver com elas.
Dessa maneira acontecem mal entendidos: amizades se perturbam, amores se rompem, pessoas, se desencontram e magoam.
- Mas você tinha dito peras!
- Não, eu falei perdas!
- Peras...
- Perdas...
Perdeu-se nesse jogo inconsistente um pedaço de vida, um brilho de entendimento se apagou.
- Eu ia dizer que você me faz “ muita falta”, mas você entendeu você está em falta ... comigo,
com a vida, consigo mesmo.
E passamos meia hora evitando nos olhar de frente, nesses momentos o universo esteve enm desconserto, e nós desconcertados.
Quando eu era menina, certo dia num almoço fiquei observando a família à mesa, e aquelas pessoas tão conhecidas me pareceram umas enormes salsichas com tufos de pêlos no alto, bolinhas se mexendo ( chamadas olhos – ansiosos, tranqüilos, amorosos ou hostis) e aquele furo no centro que se abria e fechava emitindo sons. A boca do beijo, do silêncio ou do insulto.
As outras salsichas também olhavam com seus botõezinhos de vidro brilhante, viravam-se para os lados, agitavam mãos ou abriam e fechavam seus furinhos-boca respondendo.
Palavras escoaçavam sobre a mesa como bilhetes, sinais de fumaça ou borboletas perdidas. Um falava, outro compreendia e devolvia sinais sonoros. Mas de repente alguém não ouviu direito: os olhinhos ficaram duros, os sons da boca estridentes, ou baixos mas furiosos.
Agitação na sala de jantar. Briga em família.
Então nem sempre que alguém dizia “flor” o outro pensava “flor”? e podia entender “ pedra”? Em lugar de enviar sobre a mesa palavras-borboleta, jogavam palavras- pedra?
Nada era simples. O mundo se desarrumava um pouco por causa desses mal-entendidos.
Até ali, para mim palavras eram objetos mágicos: agora via que podiam ser traiçoeiros. Belos de olhar, mas duros, com arestas cortantes; caramelos de vários sabores que eu deixava rolar na boca com delícia, porém a gente podia se engasgar, até morrer.
Não era só prazer a linguagem: peras, perdas, fazer falta, estar em falta ou sentir falta. Desacordo, desconserto. Ambivalentes como nós, palavras preparam armadilhas ou abrem portas de sedução. Embalam ou derrubam, eredam em doces laços, ou nos matam dolorosamente – como punhais.
Certa vez errei uma tecla do computador, e em lugar de “perdas” saiu “ peras”.
Eu ia corrigir mas li de novo, achei muito mais bonito e deixei assim. Ninguém reclamou, nem os revisores.
Quem sabe um dos que estudam minha obra, preparando com a maior gravidade sua dissertação ou tese, pare, pense, morda a ponta da caneta ou fique olhando o computador, perplexo. Para depois discorrer filosoficamente sobre aquelas frutas perdidas num texto que nada tinha a ver com elas.
Dessa maneira acontecem mal entendidos: amizades se perturbam, amores se rompem, pessoas, se desencontram e magoam.
- Mas você tinha dito peras!
- Não, eu falei perdas!
- Peras...
- Perdas...
Perdeu-se nesse jogo inconsistente um pedaço de vida, um brilho de entendimento se apagou.
- Eu ia dizer que você me faz “ muita falta”, mas você entendeu você está em falta ... comigo,
com a vida, consigo mesmo.
E passamos meia hora evitando nos olhar de frente, nesses momentos o universo esteve enm desconserto, e nós desconcertados.
Quando eu era menina, certo dia num almoço fiquei observando a família à mesa, e aquelas pessoas tão conhecidas me pareceram umas enormes salsichas com tufos de pêlos no alto, bolinhas se mexendo ( chamadas olhos – ansiosos, tranqüilos, amorosos ou hostis) e aquele furo no centro que se abria e fechava emitindo sons. A boca do beijo, do silêncio ou do insulto.
As outras salsichas também olhavam com seus botõezinhos de vidro brilhante, viravam-se para os lados, agitavam mãos ou abriam e fechavam seus furinhos-boca respondendo.
Palavras escoaçavam sobre a mesa como bilhetes, sinais de fumaça ou borboletas perdidas. Um falava, outro compreendia e devolvia sinais sonoros. Mas de repente alguém não ouviu direito: os olhinhos ficaram duros, os sons da boca estridentes, ou baixos mas furiosos.
Agitação na sala de jantar. Briga em família.
Então nem sempre que alguém dizia “flor” o outro pensava “flor”? e podia entender “ pedra”? Em lugar de enviar sobre a mesa palavras-borboleta, jogavam palavras- pedra?
Nada era simples. O mundo se desarrumava um pouco por causa desses mal-entendidos.
Até ali, para mim palavras eram objetos mágicos: agora via que podiam ser traiçoeiros. Belos de olhar, mas duros, com arestas cortantes; caramelos de vários sabores que eu deixava rolar na boca com delícia, porém a gente podia se engasgar, até morrer.
Não era só prazer a linguagem: peras, perdas, fazer falta, estar em falta ou sentir falta. Desacordo, desconserto. Ambivalentes como nós, palavras preparam armadilhas ou abrem portas de sedução. Embalam ou derrubam, eredam em doces laços, ou nos matam dolorosamente – como punhais.
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