
Iracema (1865) “uma história de bardo indígena, contada aos irmãos, à porta da cabana, aos últimos raios do sol “que se entristece”. A conclusão a tirar daqui é que o autor houve-se nisto com uma ciência e uma consciência para as quais todos os louvores são poucos.... as mulheres de seus livros trazem sempre um cunho de originalidade, de delicadeza e de graça, que se nos gravam logo na memória e no coração. Iracema é da mesma família. Em poucas palavras descreve o poeta a beleza física daquela Diana selvagem. ..A filha do Pagé, espécie de Vestal indígena, vigia do segredo da Jurema, é um complexo de graças e de paixão, de beleza e de sensibilidade, de casta reserva e de amorosa dedicação. Realça-lhe a beleza nativa a poderosa paixão do amor selvagem, do amor que procede da virgindade da natureza, participa da independência dos bosques, cresce na solidão, alenta-se do ar agreste da montanha... (Machado de Assis).
José de Alencar
Cantata de Iracema
Arranjo em estrofes, do capítulo inicial de
Iracema, sem acréscimo ou diminuição de uma vírgula,
Cantata de Iracema
Arranjo em estrofes, do capítulo inicial de
Iracema, sem acréscimo ou diminuição de uma vírgula,
por Soares Feitosa ( fragmento - parte inicial do romance)
Verdes mares bravios de minha terra natal,
Verdes mares bravios de minha terra natal,
onde canta a jandaia 
nas frondes da carnaúba;
verdes mares, que brilhais
verdes mares, que brilhais
como líquida esmeralda 
aos raios do sol nascente, 
perlongando as alvas praias 
ensombradas de coqueiros. 
Serenai, verdes mares e alisai 
docemente a vaga impetuosa, 
para que o barco do aventureiro 
manso resvale à flor das águas. 
Onde vai a afoita jangada, 
que deixa rápida a costa cearense, aberta 
ao fresco terral a grande vela? 
.................. 
........... 
..... 
... 
Além, 
muito além 
daquela serraque ainda azula 
no horizonte, nasceu 
Iracema. 
Iracema, 
a virgem 
dos lábios de mel, que tinha os cabelos 
mais negros 
que a asa da graúna 
e mais longos 
que seu talhe de palmeira.
O favo do jati não era
doce como seu sorriso;
nem a baunilha recendia 
no bosque como seu hálito 
perfumado. 
Mais rápida que a ema 
selvagem, a morena virgem 
corria o sertão e as matas
do Ipu, onde 
campeava sua guerreira tribo, 
da grande nação tabajara. 
O pé, grácil e nu, 
mal roçando,
alisava 
apenas a verde pelúcia 
que vestia terra com as primeiras águas. 
Um dia, ao pino o sol, 
ela repousava em um claro
da floresta.
Banhava-lhe
Banhava-lhe
o corpo a sombra da oiticica, 
mais fresca do que o orvalho da noite.
Os ramos da acácia silvestre 
esparziam flores sobre
os úmidos cabelos. 
Escondidos na folhagem 
os pássaros 
ameigavam o canto. 
Iracema saiu do banho; o aljôfar 
d'água ainda a rorejava, 
como à doce mangaba que corou 
em manhã de chuva.
Enquanto repousa, empluma
das penas do gará as flechas 
de seu arco e concerta 
com o sabiá 
da mata 
pousado no galho próximo, 
o canto agreste.
A graciosa ará, sua companheira
A graciosa ará, sua companheira
e amiga, brinca 
junto dela. 
Às vezes sobe aos ramos
da árvore e de lá chama 
a virgem
pelo nome;
outras, remexe o uru 
de palha matizada, 
onde traz a selvagem seus perfumes; 
os alvos fios de crautá,
as agulhas de juçara com que tece
a renda, 
e as tintas 
de que matiza o algodão.
Rumor suspeito 
quebra
a doce harmonia
da sesta.
Ergue a virgem os olhos,
Ergue a virgem os olhos,
que o sol não deslumbra; 
sua vista perturba-se. 
Diante dela 
e todo 
a contemplá-la, 
está 
um guerreiro estranho, 
se é guerreiro e não
algum mau espírito
da floresta. 
Tem nas faces o branco 
das areias que bordam o mar, 
nos olhos 
o azul triste das águas 
profundas. 
Ignotas armas 
e ignotos tecidos cobrem-lhe
o corpo. 
Foi rápido, como o olhar, 
o gesto de Iracema. 
A flecha 
embebida no arco partiu. 
Gotas de sangue borbulham
na face 
do desconhecido.
De primeiro ímpeto,
a mão lesta caiu 
sobre 
a cruz da espada. 
O moço guerreiro aprendeu
na religião de sua mãe, onde
a mulher
é símbolo 
de ternura e amor. 
Sofreu mais
d'alma do que da ferida.
O sentimento que ele pôs
O sentimento que ele pôs
nos olhos e no rosto 
não o sei eu.
Porém a virgem lançou
Porém a virgem lançou
de si o arco e a uiruçaba, e correu
para o guerreiro, sentida 
da mágoa que causara.
A mão que rápida ferira,
A mão que rápida ferira,
estancou mais rápida
e compassiva 
o sangue que gotejava. 
Depois Iracema quebrou a flecha homicida; 
deu a haste ao desconhecido, 
guardando consigo a ponta farpada. 
O guerreiro falou:
— Quebras comigo a flecha da paz?
— Quem te ensinou, guerreiro branco,
— Quebras comigo a flecha da paz?
— Quem te ensinou, guerreiro branco,
a linguagem
de meus irmãos?
Donde a estas matas,
Donde a estas matas,
que nunca viram 
outro guerreiro como tu? 
— Venho de bem longe, 
filha das florestas. 
Venho das terras 
que teus irmãos já possuíram,
e hoje têm os meus. 
— Bem vindo seja o estrangeiro 
aos campos dos tabajaras, 
senhores das aldeias, e à cabana 
de Araquém, 
pai de Iracema.


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